quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

jão(do ratos, citando rui barbosa): "não se iluda com pessoas de cabelo branco, pois os canalhas também envelhecem"

Foto: Gibran Mendes
“Foi um golpe de velhos aristocratas que não querem ver pobre em avião. Para eles pobre tem que andar de ônibus, tem que se foder, engraxar o sapato deles e servir a comida deles. Rui Barbosa dizia não se iluda com pessoas de cabelo branco, pois os canalhas também envelhecem”.

Com essa frase João Carlos Molina Esteves, 55 anos, ou simplesmente Jão, guitarrista do Ratos de Porão e do Periferia SA, resume o cenário político do Brasil após o golpe que colocou Michel Temer na presidência da república. Fundador da lendária banda criada em 1981 em meio a explosão do movimento punk no Brasil, Jão atendeu a reportagem do Porém.net horas antes de um show do RDP no Jokers Pub, em Curitiba.

A formação atual com Jão na guitarra, João Gordo no vocal, Boka na bateria e Juninho no baixo é a com mais longevidade ao longo dos 36 anos de carreira do Ratos. Depois de tantas mudanças de integrantes (13 no total), Jão diz que a tolerância e o respeito as individualidades de cada um tem sido a fórmula. “São três veganos e eu sou o açougueiro da banda”, brinca o guitarrista, que é um dos sócios do Underdog, um bar-restaurante em São Paulo especializado em carnes. O prato principal é a parrilla argentina.

Veia operária que permanece ativa no RDP, Jão falou da ascensão do fascismo, da extrema direita e personagens caricatos como Jair Bolsonaro, ao qual classifica como uma ‘toupeira’. “Tem um monte de filha da puta que tem orgulho de um cara deste. Devem se identificar pela toupeirice. Discuto nas redes sociais com esses babacas que acreditam que a terra é plana, que Hitler era comunista. Os Bolsominions da vida, esses escrotos que seguem MBL. Tem até punk que gosta de Bolsonaro. Um cara deste não está entendendo porra nenhuma”.

Esse cenário político atual deve inspirar o próximo projeto do Ratos de Porão, como antecipa o guitarrista. “Estamos terminando de compor, pois o momento do Brasil é bem propício. Motivo para fazer letra tem”. O último álbum lançado pela banda foi Século Sinistro, em 2014. Confira a entrevista na íntegra:

São 36 anos de carreira. Como manter a mesma pegada, atravessando gerações de fãs?
O Ratos de Porão nunca criou expectativa de sucesso, de exposição em mídia. A própria correria foi mantendo a coisa viva. Não somos uma banda popular nem dentro do rock, mas temos um público fiel no mundo inteiro. Isso é gratificante. É legal você ver um cara da Sérvia, por exemplo, que vai no seu show e diz: escuto sua banda faz tempo. Tem isso e tem o fato da gente gostar do que faz, isso é o que mantém a banda viva. A gente vê muita banda que pinta e depois de um ano some. Vamos pegar um exemplo daquela época das bandas emo, o Restart. Os caras fizeram sucesso, talvez ganharam em um ano mais do que eu ganhei na vida inteira, mas os caras não conseguem viver sem aquilo, sem grana e as facilidades que o sucesso traz. A gente já teve exposição em mídia, o Gordo já foi apresentador da MTV, mas isso para o Ratos nunca foi um retorno positivo. Somos uma banda que veio do punk, então o fato do vocalista trabalhar na TV não trouxe sucesso, pelo contrário, trouxe cobrança ideológica. A banda sempre tentou manter-se a parte disso, inclusive o Gordo.

O Ratos passou por mudanças de integrantes e do som da banda. Fale dessas transformações e cobranças que receberam.
O lance da cobrança do estilo musical já foi pior, pois às vezes é difícil para algumas pessoas assimilarem. Queira ou não, o Ratos deu a cara para bater, deu um passo a frente, ninguém estava misturando punk com metal quando a gente começou. Da parte do punk sempre teve aquele lance dos caras torcerem o bico. O Ratos sempre fez discos diferentes um dos outros, sempre mantendo o estilo da banda. Óbvio que teve outros ingredientes que foram somados a nossa música, influências diversas também. Tem banda como ACDC, Motorhead, Ramones, Cólera, que podem ficar tocando a mesma coisa a vida inteira e se sentir bem com isso. Não é meu caso. Gosto de fazer coisas que sejam relevantes para mim em primeiro lugar.

E o que tem escutado?
Tem uns estilos que meio que doem no saco, bandas nessa linha tipo Slipknot, tem umas guitarronas e tal, maior visual maneiro, mas eu não consigo parar para ouvir. Não sei se estou ficando um velho chato. Quando eu pego coisa nova para ouvir é banda tipo Slayer, que lança sempre disco bom, Napalm Death, Testament, Exodus. Não são bandas novas, são discos novos. Citei o new metal, que o cara vai cantando meio ‘amorosozinho’ e depois vai ficando ‘raivosão’. Sei lá, prefiro ouvir um Johnny Cash.

Como é a relação com os demais integrantes do RDP?
Bem boa, viajamos junto para caralho. Viajamos mais juntos entre nós do que com as nossas famílias. Respeitamos as individualidades. Sou o único que não sou vegano. A gente tem nossa vida fora da banda e ninguém fica andando junto para lá e para cá. Fora do lance do Ratos, cada um tem sua vida e é bem diferente a vida de cada um. Isso é bom, pois na época lá de atrás, quando a gente do Ratos andava toda hora junto, tinha mais treta. Na época do Jabá [ex-baixista e um dos fundadores 1981-1993], do Spaghetti [ex-baterista 1981 a 1991]. A gente era jovem, louco para caralho, a banda tinha mais exposição. Quando a gente fez o Brasil [álbum lançado em 1989], a gente estava em gravadora grande, saía em revista, éramos um bando de punk louco sem noção. Era mais complicado, pois isso acaba desgastando.

Seu pai tinha uma oficina de pintura de carros, você trabalhou de motoboy, com Kombi em transportadora. Podemos considerar o Jão, a veia operária do Ratos?
Pode se dizer que sim. Hoje eu tenho um bar, que a especialidade é carne, a parrilla argentina. Isso criou uma piada dentro da banda de que o Ratos criou um açougue. Três são veganos e eu sou o açougueiro da banda. Venho de família operária, o rock me deu muita coisa, mas nunca me deu luxo. Consegui criar minhas filhas, viver e criá-las honestamente. Criar filho com rock no Brasil é meio foda, ainda mais com um som do tipo do Ratos.

Qual a diferença dos projetos e dos públicos do Ratos de Porão e do Periferia SA.?
O público do Ratos é mais eclético. Vai desde o pessoal do punk, do hardcore, do metal, até uns perdidos que falam que é a banda do João Gordo. Já o Periferia é algo mais direcionado musicalmente, não é tão eclético. Fazemos um punk de protesto, hardcore old school. Essa é a nossa pegada. Muita gente que não vai no show do Periferia, vai no show do Ratos. E tem gente que vai no Periferia e não gosta do Ratos.

Vocês foram precursores do punk no Brasil e na época havia rivalidade entre os punks de São Paulo (capital) e do ABC. Fale desse período.
Era uma treta de gangue bairrista, uns se achavam mais punk que os outros. Quando entrei no punk eu nunca tinha ido para o ABC. Pelo fato do ABC ter as empresas multinacionais, as indústrias, tinha muito punk working class, mais tinha muito skinhead, aquele lance nacionalista. E isso também era motivo de briga. No fundo acho que todo mundo gostava de brigar e de ter uma treta. Eu particularmente, o Jão, nunca tive nada com os caras. Eu até achava que tinha umas bandas do ABC bem mais fodas que as de São Paulo, tipo o Áustria. Quando teve o Começo do Fim do Mundo [festival punk em 1982], no Sesc Pompéia, foi tenso, pois juntou todo mundo, juntou punks de São Paulo e do ABC pela primeira vez. O clima era de que iria dar merda. Os caras do ABC achavam que a gente era playboy, mas não tinha playboy, a gente era da periferia de São Paulo. Subúrbio e periferia é tudo a mesma coisa, gente excluída da sociedade. Hoje já tem o lance ideológico, do tipo: sou vegano e não ando com você, sou anarcopunk e não ando com você, sou crust e não ando contigo.

Quais as histórias mais bizarras que lembra nestes 36 anos?
Coisas bizarras acontecem sempre. Mas tem umas coisas que são bem loucas, se puxar no Youtube vai achar lá “Ratos: bolt of love”, a gente tocando em um barco do amor em um lago na Finlândia. A gente tocando e o barquinho chacoalhando. Esse ano fizemos uma turnê latino-americana em lugares que nunca tínhamos ido. Costa Rica, El Salvador. É louco ver que a gente tem público lá. Na Bolívia, por exemplo, teve um show com uns moleques que tinham umas camisetas escritas Ratos de Porão a mão, pois os moleques não tinham dinheiro para comprar e acho que nem chegava nosso material lá. Isso é louco, pois remete a minha adolescência. Tinha umas camisetas escritas “vida ruim”, “Ratos de Porão”. Me identifiquei para caralho. Hoje, mesmo com esse mundo globalizado, tem um monte de excluído. Se marcar está pior. A evolução é relativa.

Em 1989 vocês lançaram Brasil, com clássicos como Amazônia Nunca Mais, Farsa Nacionalista, Máquina Militar, Crianças Sem Futuro. Trace o Brasil de 1989 e o Brasil atual?
O momento atual do Brasil como sociedade está bem estranho. Não sei até que ponto as redes sociais influenciaram nisso. Hoje em dia tem um monte de filha da puta eleitor do Bolsonaro que tem orgulho disso, orgulho de um cara que é a maior toupeira. Se identificam pela toupeirice entre o candidato e o eleitor. Discuto nas redes sociais com uns babacas que acreditam que a terra é plana, que Hitler era comunista. O mundo tem muita informação hoje, na minha época você tinha que correr atrás da informação. Era através de livros, livro te salvava. Hoje os idiotas compram ideias prontas. A política no Brasil está bizarra, a eleição do ano que vem é um negócio temeroso. As opções são brutas, até Luciano Huck tentaram lançar. Depois do golpe, pois isso foi um golpe, um golpe de velhos aristocratas que não querem ver pobre em avião. Para eles pobres tem que andar de ônibus, tem que se foder,  engraxar o sapato deles, servir a comida deles. Olha o Temer, eu desejo muito mal para esse verme filho da puta. Onde está aquela galera que estava fazendo dancinha na Paulista pintado? Onde está essa gente? Essa galera não está se sentindo enganada? Não é possível, o preço da gasolina para mim é o mesmo que para eles. Olha esse lance trabalhista [reforma trabalhista], eu não sou empregado, mas no meu bar eu tenho várias pessoas registradas. Eu não concordo com isso ai e não vou fazer isso com os caras que trabalham para mim. O bagulho foi um crime, um roubo, uma exploração.

E o Dória?
Putz, o Doriana é triste hein malandro! Os caras pensaram que ele iria colocar todo mundo de camisa polo Ralph Lauren na escola, caviar na merenda, vai vendo. O cara é um patife, um marqueteiro. Nunca cuidou nem da conta corrente dele, não sabe administrar nada. É capaz de um bosta deste tentar ser candidato. Quem votou no cara lá em São Paulo não quer dar o braço a torcer, assim como a galera que apoiou o golpe. Os caras tem tipo orgulho, jamais vão admitir que estão errados. O cara burro não admite nunca, ele vê que a gasolina está mais de quatro contos, vê os direitos trabalhistas roubados, vê professor não ganhando salário, mas não admite a merda toda. Pega o Alckmin, outro patife da pior espécie. Já dizia Rui Barbosa, “não se iluda com pessoas de cabelo branco, pois os canalhas também envelhecem”.

A repressão, a violência policial, sempre estiveram nas letras do Ratos. Diante do atual cenário, para onde podemos caminhar?
Acho preocupante todo esse lance de repressão. Eu sempre posto lá [Facebook], a polícia militar tem que acabar, porque esse formato aí é da ditadura. Estamos no mesmo nível daquela época, vai professor protestar porque não está ganhando salário e leva bala de borracha, spray de pimenta no olho. Quando eu posto isso sempre vem os Bolsominions dizer: “quem tem medo de polícia é bandido (sic)”. Essas frases prontas. Não sou bandido, mas sou cabreiro com a polícia sim.

Quando o Ratos estava prestes a completar 30 anos foi lançado o documentário Guidable. Recentemente vocês fizeram um show com outras bandas, como Resto de Nada, Mercenárias, AI-5, em comemoração aos 40 anos do punk rock. E para os 40 anos do RDP, o que vislumbrar?
Quando o Ratos fez 30 anos eu juntei quase todo mundo que tocou no Ratos, faltou só o Pica Pau [ex-baixista 1995 a 1999]. Era para ter saído um DVD disso ai. Contamos a história da banda através da discografia com as formações da época. Mas deu merda no áudio e desistimos de lançar. Sobre os 40 anos têm quatro anos para gente pensar, mas vamos comemorar de alguma forma sim.

Vocês estão no estúdio compondo?
Estamos terminando de compor, mas cada um tem sua vida, seus projetos paralelos, mas estamos querendo fazer disco novo por aí, pois o momento do Brasil é bem propício. Motivo para fazer letra tem. O Ratos sempre foi chato com a gente mesmo neste lance de composição. A gente vai gravar o disco na certeza que tem que estar legal. A gente prefere demorar um pouco mais para lançar um disco ao invés de fazer um bagulho nas coxas.

Nestes 36 anos de banda, se pudesse voltar no tempo, o que faria diferente?
Não fumaria crack. Isso atrasou meu lado, perdi amigos. Vida pessoal ficou na merda, devendo para traficante. Mandamos o Jabá embora da banda, que era o fundador junto comigo. Esse tipo de coisas. Essas cagadas se eu não pudesse fazer seria bem melhor. Foi uma fase bem crítica, não sei como a banda não acabou e até conseguiu produzir coisas.

por Júlio Carignano

porém.net







segunda-feira, 30 de outubro de 2017

China Miéville e o "romance sem ficção" da revolução russa

China Miéville é quase um Maiakóvski inglês. Assim como o poeta que revolucionou o verso russo e cantou a insurreição comunista de outubro de 1917, Miéville se divide entre a literatura e a militância política. Ele é um premiado autor de ficção científica. Seus volumosos romances são apinhados de monstros, alienígenas, seres mitológicos e luta de classes. Também é um estudioso do marxismo, doutor em Direito Internacional pela London School of Economics e militante do Partido Trabalhista britânico. Em seu livro mais recente, Miéville combina suas duas paixões: Outubro (Boitempo, 384 páginas, R$ 59), recém-­publicado no Brasil, narra, mês a mês, os eventos que culminaram na Revolução Russa. Ao contrário dos outros livros de Miéville, Outubro não tem uma linha sequer de ficção nem um único personagem inventado. Em entrevista a ÉPOCA, Miéville contou como foi escrever um romance sem ficção e refletiu sobre os dilemas da esquerda contemporânea, que não sabe direito como olhar para a revolução bolchevique.


ÉPOCA – Como foi para um autor de literatura fantástica escrever um livro de não ficção?
China Miéville
Difícil. Eu estava muito nervoso. Segui uma regra bastante rigorosa: não podia inventar nada. Estava ansioso pela recepção das pessoas que conhecem o assunto muito bem. Outubro foi escrito principalmente para quem não conhece a história, mas eu não queria que especialistas pensassem que eu não tinha feito meu dever de casa quando lessem. A recepção foi muito simpática. Valeu a pena. De tudo o que eu já escrevi, esse é o livro que me causou mais ansiedade, porque, embora seja uma história, e não uma discussão política, as questões políticas estão ali, tácitas.

ÉPOCA – Em Outubro, o senhor diz que não aborda essa história com neutralidade, que tem seus heróis e seus vilões. Como fez para não deixar que seus sentimentos pela Revolução Russa interferissem demais no texto?
Miéville –
Os escritores não são neutros, mas podem tentar ser justos. Há alguns personagens no livro de quem eu discordo politicamente ou que representam ideias às quais me oponho, mas que, ainda assim, são personagens fascinantes. Por outro lado, tentei não ser muito compassivo com figuras de quem estou próximo politicamente. O final do livro, por exemplo, é uma longa discussão sobre os erros da revolução. Não sou eu quem deve julgar quão bem-sucedido eu fui, mas posso afirmar que sempre estive muito consciente do problema e me esforcei muito para não ser injusto.

ÉPOCA – Sempre que o assunto é a Revolução Russa, surge a pergunta: como a revolução popular se transformou num Estado totalitário? O senhor tem alguma resposta?
Miéville –
Para mim, não há uma causa única que explique o que deu errado, mas uma complexidade de causas. A revolução foi cercada por todos os lados e houve tentativas deliberadas de destruí-la. Naquele contexto, algumas decisões tomadas pelos revolucionários não ajudaram as coisas a avançar. Por exemplo: em 1924, os bolcheviques desistiram de insistir que uma revolução socialista não pode ser bem-­sucedida em um só país, devido à integração da economia mundial. Naquele ano, ao perceber que a possibilidade da revolução internacionalista recuava, eles viraram esse argumento de ponta-cabeça e concluíram que, sim, o socialismo em um só país era possível. Para mim, isso foi uma catástrofe absoluta! Naquele momento de desespero, em vez de identificar com clareza o problema, eles preferiram se enganar, minimizando o problema.

ÉPOCA – Aqui no Brasil, depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff, debate-se muito a reconstrução da esquerda. Recentemente, o filósofo Ruy Fausto, um renomado estudioso do marxismo, publicou o livro Caminhos da esquerda, no qual ele argumenta ser urgente a esquerda abandonar suas velhas patologias: populismo e tendências totalitárias e antidemocráticas. O senhor acredita que a esquerda deva se livrar de algumas patologias?
Miéville –
Com certeza há patologias. Só um sectário acharia que a esquerda não tem patologias para se livrar. Precisamos nos livrar de nossas patologias e discutir como seguir em frente, como criar o que chamo de “esquerda habitável”. Isso é crucial. Por meio de minha experiência, percebo na esquerda um certo sectarismo, uma brutalidade indesejada. É claro que há muita gente que não compactua com isso, mas são patologias que percebo, e acho que a esquerda não se esforçou o suficiente para se livrar delas. Eu mesmo já me envolvi em brigas feias no interior da esquerda britânica. Essas brigas sempre nos deixam absolutamente exaustos. É claro que vamos discordar, mas não precisamos conduzir nossa política sempre dessa maneira. Aliás, há bastante gente na esquerda, especialmente os mais jovens, que diz isso com seriedade, o que me dá muita esperança.

ÉPOCA – Atualmente, a esquerda discute muito a situação venezuelana. No Brasil, o PT apoia o governo antidemocrático de Nicolás Maduro. Recentemente, o líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, disse que a violência é praticada tanto pelo governo quanto pela oposição. Qual deveria ser a postura da esquerda diante da crise venezuelana?
Miéville –
A esquerda pode começar não se aliando com os bastiões da direita que tentam proclamar a morte do chavismo e dos projetos populares na América Latina. Dito isso, acredito que nós, de esquerda, devemos enfrentar com pragmatismo e seriedade os problemas de Maduro e seu regime, que vêm cerceando a democracia. A esquerda não pode dizer que não há problemas ali. Há, no entanto, grupos na Venezuela que não se aliam de modo algum com Maduro e recusam esse tipo de chantagem política que diz que, se você não apoia o regime, você está dançando no ritmo do capital ou é um fascista. Esse tipo de chantagem deve ser rejeitada. Não posso, em sã consciência, alinhar-me com o regime de Maduro, mas isso não quer dizer que eu apoio a oposição. Precisamos fortalecer as tendências minoritárias da esquerda venezuelana que estão comprometidas, acima de tudo, com a democracia popular.

ÉPOCA – Nos últimos tempos, o eleitorado de centro-­esquerda tem se voltado para candidatos populistas e de extrema-direita. Recentemente, o ex-chefe estrategista da Casa Branca Steve Bannon disse: “Se a esquerda estiver focada em raça e identidade, nós avançamos com o nacionalismo econômico e, assim, esmagamos os democratas”. Focar em questões raciais e de gênero em vez do antigo programa econômico estatizante é um erro das esquerdas?
Miéville –
É perigoso comprar essa narrativa que afirma que toda essa conversa sobre racismo alienou os pobres brancos. É um erro. Ignorar opressões estruturais e históricas, como o racismo americano ou o brasileiro, para não alienar a classe trabalhadora branca, é covardia política e falta de senso estratégico. Ignorar o racismo significa não lidar seriamente com a questão das classes sociais, porque classe social, raça e gênero estão imbricados. Seria um insulto ignorar um movimento como o Black Lives Matter, que provocou um impacto extraordinário na política americana. Mas, é claro, há maneiras melhores e piores de lidar com as políticas identitárias. Há muita gente na internet, uma esquerda de Twitter, que impõe essas plataformas de uma maneira que não ajuda ninguém.

ÉPOCA – Na eleição britânica, a esquerda radical conseguiu resultados surpreendentes, mas Jeremy Corbyn não foi eleito. Apostar no radicalismo pode ajudar a esquerda a voltar ao poder?
Miéville –
No mundo todo estamos assistindo a um colapso do liberalismo. Um programa radical pode, sim, vencer. É verdade que estamos nos estágios iniciais – se tivermos sorte – de um ressurgimento da esquerda. E não surpreende que a nova esquerda ainda não tenha conseguido superar décadas de desencanto popular com os políticos. Há uma montanha a escalar. Nos últimos meses, aprendemos que essa montanha pode, sim, ser escalada.

ÉPOCA – Na época do Brexit, o senhor afirmou que era difícil para a esquerda se posicionar sobre a saída dos britânicos da União Europeia, porque o voto anti-UE estava sendo patrocinado por uma onda de preconceito e xenofobia. Agora, parece haver muita ansiedade quanto aos impactos do Brexit na economia britânica. Como o senhor avalia a saída britânica do mercado comum um ano após o referendo?
Miéville –
O governo britânico está lidando com o Brexit sem nenhum programa ou tática. Os sonhos econômicos da direita anti-UE – uma espécie de parque de diversões no Atlântico – são mais que absurdos. E a direita xenófoba saiu fortalecida do referendo. O desejo nostálgico de muitos liberais de novo referendo, ou de simplesmente ignorar o resultado, é ridículo. A tarefa agora é – usando a fraseologia da esquerda do Partido Trabalhista – fazer um Brexit para muitos, não para poucos, contra o Brexit dos reacionários. É uma tarefa muito difícil, que acarretará muita dor e dificuldades, mas não é impossível. Vale a pena lutar.

por RUAN DE SOUSA GABRIEL

Época

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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Margareth Tatcher sorri no inferno ...

Superestimamos as possibilidades com as vitórias de Hugo Chávez, Nestor Kirchner, Jose Mujica, Lula e tantos outros. Nosso segundo engano veio com a crise financeira norte-americana de 2008. Esses eventos políticos, econômicos e sociais transmitiram a sensação de que as ideias formuladas e propagandeadas desde Washington para o mundo estavam mortas.

Ledo engano, apesar das conquistas sociais e da exuberância do ciclo político de tentativas de distribuição de renda, riqueza e oportunidades na América latina. As ideias de Washington nunca morreram e nunca morrerão enquanto o capitalismo existir.

Nos últimos 20 anos, entretanto, as vitórias na América Latina de candidatos democratas e progressistas (com influência e participação da esquerda) foram reações políticas bem-sucedidas. Demostraram alguma capacidade de resistência ao rolo compressor reorganizado no programa chamando de Consenso de Washington de 1989.

Por outro lado, o terremoto financeiro de 2008 representou apenas dores de crescimento do projeto de Washington. A crise ocorreu (e ainda permanece) porque os capitais financeiros abundantes buscavam novos mercados para dar continuidade ao seu processo de acumulação continuada e acelerada.
A turbulência iniciada em 2008 não foi uma crise do projeto de Washington que demonstrou uma fraqueza teórica ou econômica do seu pilar. Muito ao contrário, era uma crise que revelava quão forte era o seu pilar. O poderio econômico monstruoso é o pilar do projeto de Washington.

Começamos uma nova era do capitalismo nos anos 1980, com as reformas propostas por Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Tais propostas de mudanças foram consagradas no programa batizado por John Williamson de Consenso de Washington. Essa é uma agenda alternativa ao programa socialdemocrata que havia vigorado de forma mais intensa a partir dos anos 1940. A socialdemocracia havia organizado um sistema de harmonia entre o capital e o trabalho.

No pós-segunda Guerra, os capitais foram regulados e, portanto, foi contida a busca voraz pela maximização de lucros. Em linhas gerais, houve a socialização dos ganhos do sistema via esquemas de tributação e geração de pleno emprego, o que resultou na ampliação de oportunidades sociais. Era marca da socialdemocracia a geração de empregos com condições dignas e salários generosos. A socialdemocracia é um programa político de contenção dos instintos capitalistas de concentração de renda, riqueza e oportunidades.

Oposição teórica e política à socialdemocracia e ao socialismo existia há décadas. Contudo, não existiam condições objetivas para uma reação do capital. Somente nos anos 1970 é que houve a desorganização econômica no Reino Unido e nos Estados Unidos. Houve desaceleração econômica, recessão e inflação. As condições objetivas econômicas degradadas, então, abriram espaço para a reação política do capital.

O movimento iniciado por Reagan-Thatcher sugeria a superação do modelo que propunha a regulação do capital, que distribuía renda e riqueza e multiplicava oportunidades para todos. Nos anos 1980, foi idealizado uma reorganização do capitalismo onde foram escolhidos os atores que seriam os campeões mundiais da reação e da dominação do capital. Foram escolhidos os mais fortes para que ficassem mais fortes ainda. Os candidatos naturais eram as megacorporações financeiras e produtivas, ou seja, os grandes bancos e multinacionais.

A consequência dessa opção política e econômica é uma opção de classe, pois o capitalismo organiza a sociedade em classes. Os donos do capital seriam favorecidos, os trabalhadores seriam empobrecidos e os pobres se tornariam miseráveis.

O programa estabelecido no Consenso de Washington é essencialmente econômico. É, no entanto, reconhecido na apresentação do consenso por Wiliamson um desejo maior de Washington. Desejavam a democracia, direitos humanos e preservação do meio ambiente em outros países.

Essa é uma das partes mais importantes do artigo de Williamson. O autor claramente indica que embora existam esses objetivos mais amplos, “...(eles) jogam diminuto papel na determinação das atitudes de Washington em relação às (formulações das) políticas econômicas...”  e que as políticas estabelecidas no programa não teriam “...implicações importantes para quaisquer daqueles objetivos”.

A mensagem é que o Consenso de Washington é um programa que pode ser implantado com democracia ou sem democracia, com preservação do meio ambiente ou com a sua destruição e com direitos humanos ou sem eles.

Na primeira onda de aplicação desse programa, chamada de onda neoliberal dos anos 1990, houve as primeiras entregas aos campeões mundiais: desregulamentação financeira, privatizações e redução de carga tributária para o grande capital e seus proprietários. Embora bem-sucedido na realização de entregas aos de cima, o efeito colateral daquela onda neoliberal foi uma enorme insatisfação popular. Seus executores prometeram prosperidade aos trabalhadores e pobres, mas somente entregaram realizações aos rentistas, às multinacionais e aos bancos.

O projeto de Thatcher, Reagan e do Consenso de Washington foi derrotado nas eleições presidenciais no Brasil nos anos 2000 e em diversos países da América Latina onde tinha sido aplicado. Apesar dos fracassos eleitorais, continuou seu movimento por diversas vias. Penetravam nos governos que faziam oposição, apoiavam movimentos de desestabilização desses governos, conquistaram as mídias locais, o Judiciário, a burocracia estatal e financiavam movimentos para ampliar a base política de oposição nas casas legislativas e na sociedade.

Embora pareça um pleonasmo, vale dizer que o principal motor do capital é o seu poderio econômico. Isso facilita a sua atividade em uma sociedade capitalista: é peixe na água. O capital utilizou o seu poderio econômico para se valer das táticas elaboradas por seus opositores. Foi e tem sido bem-sucedido. Trabalhou incessantemente para conquistar a hegemonia cultural dos seus valores à Antonio Gramsci. Fez estudos, agitação e propaganda tal como descrito no “O Que Fazer?” de Vladimir Lenin. São 30 anos de atividade militante diária do capital apoiada por trilhões de dólares.

A ideologia e a política do capital se infiltraram por todos os cantos, por todos os lados. Penetraram na consciência e nos sonhos de lideranças políticas e do cidadão comum. Os grandes bancos passaram, por exemplo, a comandar os resultados de pesquisas nos departamentos de economia das principais universidades norte-americanas (cenas constrangedoras foram registradas no documentário Inside Job, de Charles Ferguson).

Mais: mundo afora, partidos progressistas e de esquerda abandonaram a luta de classes e suas políticas de desconcentração da renda e da riqueza para abraçar pautas identitárias (mas continuam se autovalorizando e arrogantemente se autointitulando de esquerda pura).

A força do capital é tão grande nos dias de hoje que ela neutralizou ou anulou o campo político no qual a esquerda pode atuar. A democracia e os processos eleitorais serão utilizados se o candidato representante do capital tiver vitória garantida. A democracia e os processos eleitorais serão controlados, deformados ou suprimidos se houver chance de vitória de um candidato que não seja de confiança do capital.

A corrupção será combatida em nome da vitória eleitoral do candidato do capital. A corrupção será praticada se for para garantir a vitória do candidato do capital. O capital necessita apenas controlar os orçamentos governamentais e os recursos naturais. A política, as organizações partidárias, a democracia, as instituições, os Estados nacionais não são necessários ao capital para que os seus fins (descritos em dez pontos do Consenso de Washington) sejam alcançados.

O erro inicial dos estrategistas do Consenso de Washington foi pensar que poderiam conviver com a política e a democracia sem restrições. As derrotas que sofreram em quatro eleições presidenciais no Brasil e em vários outros países colocaram fim nessa ilusão. Desfeita a ilusão, viraram a mesa. Tal virada somente foi possível porque conquistaram corações e mentes (ou seja, obtiveram hegemonia cultural e política).

O capital, por meio da atuação das multinacionais e grandes bancos, estava invertendo há anos a curva de desconcentração de renda e riqueza do período 1945-1975. Não era fácil fazer tal interpretação à época (ao longo dos anos 1990 e 2000). E mais: ainda que fosse feita, a força do capital é avassaladora. Talvez, a trajetória fosse de maior resistência, mas não necessariamente de vitória sobre o capital.

Na segunda década do XXI, o capital avançou ainda mais sobre a América Latina e busca a sua consolidação política e ideológica. Em Honduras, Manuel Zelaya foi golpeado. Fernando Lugo foi derrubado no Paraguai. No Brasil, Dilma Rousseff também sofreu um golpe. Na Argentina, Cristina Kirchner foi derrotada nas eleições e é perseguida pelo Judiciário. No Uruguai, Jose Mujica teve que dar ênfase nas pautas de identidade.

No Equador, Rafael Correa não conseguiu reintroduzir o sucre, a moeda nacional. Na Venezuela, Hugo Chávez politizou as forças armadas e as massas e reorganizou o Judiciário. Os Estados Unidos reagiram e derrubaram o preço internacional do petróleo por meio do aumento da produção (interna e com uma aliança com a Arábia Saudita). Assim, deixaram o país em crise e aumentam o cerco. Nicolas Maduro resiste como pode.

E, no Brasil, a perseguição continua incessante: Lula é caçado por todos os lados.

Na nova era do capitalismo, o capital não aceita mais a política de conciliação com o trabalho. Nenhuma concessão é feita. A socialdemocracia não é mais aceita, nem a genuína, a europeia, nem a latino-americana do século XXI. O rolo compressor avança. O jogo é jogado sem regras. É vale tudo. É luta de classes cristalina pela concentração da renda e da riqueza por meio do controle de orçamentos públicos e dos recursos naturais.

por João Sicsú

#carta 


quinta-feira, 13 de julho de 2017

rock e conservadorismo

O impacto do rock desde sua criação vem da transgressão, da subversão, do desafio ao status quo e da intensidade emocional de misturar realidades e expectativas. A ambiguidade sexual, a revolta política e a mistura de raças e nacionalidades transformavam o que poderia ser apenas um novo gênero musical – com raízes idênticas em realidades distintas (o blues e o country, as duas metades que até hoje simbolizam os Estados Unidos) – em uma febre global. Baixo, guitarra e bateria equilibrando frases elétricas e refrões em forma de hino fizeram esta novidade norte-americana se espalhar pelo planeta à medida que a adolescência ganhava voz pela primeira vez na história.
Mas ao tornar-se clássico, o gênero passou a cultuar símbolos e uma mitologia que aos poucos engessou suas principais qualidades para firmar seus holofotes apenas no ego dos artistas. Logo o astro do rock era mais importante que sua mensagem e aos poucos as premissas que metamorfosearam o gênero musical numa transformação comportamental foram envelhecendo com seus primeiros protagonistas, que perderam o viço da juventude e tudo de bom e de ruim que os relacionava àquela faixa etária. Aos poucos a música eletrônica, o hip hop e uma nova vanguarda foram suprindo aquela necessidade de extravasar que antes era proporcionada pelo gênero. O rock foi se transformando em algo reacionário, reativo e eminentemente conservador – autocelebratório e machista, indulgente e preconceituoso, intolerante e caricato. Até o indie rock – versão alternativa para esse rock dito clássico – repete tais erros.
Este retrato, no entanto, é impreciso. Talvez pelo excesso de atenção em alguns dos grandes vendedores de discos do passado, o gênero passe por esse envelhecimento grotesco, mas ele não mostra as transformações que eventualmente vão sendo propostas por artistas mais novos* ao longo do tempo. Pelo menos até a ultima década do século passado o rock se renovou e se reinventou, se dividindo numa impressionante miríade de subgêneros que prestaram maior ou menor tributo à tradição que os antecedeu, mas garantiram ao gênero o frescor da novidade - o grunge, por exemplo, é um herdeiro direto do punk, com influencias do metal e do chamado "indie rock', mas foi também um sopro renovador que varreu das paradas de sucesso o rock de arena ndas bandas de metal “farofa”. Já o Black metal norueguês não parece ter nenhuma conexão com a musica de Chuck Berry - embora tenha. O Punk que, por sua vez, foi uma reação à acomodação e à pompa progressiva da década de 1970, um retorno visceral às raízes primordiais numa nova linguagem, visceral e radicalmente contestadora – muito embora um de seus artífices, o guitarrista Johnny Ramone, fosse um conservador assumido.  
Ao longo do tempo tivemos novas gerações desconstruindo o formato estabelecido entre os anos 50 e 60 e reinventando um rock que muitas vezes transcende sonoridades estabelecidas e desafia as expectativas. Acho, portanto, extremamente reducionista a afirmação que muitos fazem hoje em dia nas redes sociais de que o rock é “conservador”. Que rock? Para cada Ted Nugent, Lobão ou Roger do Ultraje a Rigor sempre tivemos e quero crer que ainda temos um Ian McKaye, um Tom Morello ou um Rodrigo do Dead Fish. Para cada encontro de Elvis com Nixon, um show arrebatador dos Stooges ou do MC5.
Na cacofonia das redes sociais, "o rock é conservador" é apenas mais uma sentença de impacto imprecisa e equivocada. Em sua essência, nunca foi. Foi o gênero que fez cair as barreiras raciais, ao mesclar a musica dos brancos e dos pretos numa coisa só, se desdobrando e se reinventando infinitamente ao longo do tempo e servindo de trilha sonora para levantes culturais revolucionários, como o hippie e o punk, dentre outros. Algumas correntes, como a do Heavy Metal, talvez sejam realmente mais fechadas em si mesmas, avessas a novidades, mas isso acontece muito mais por um instinto de preservação “tribal” que por reacionarismo político e/ou comportamental. Mesmo assim o contato com a diversidade cultural do mundo real acaba acontecendo e também ele, o Heavy Metal, evolui e se torna mais dinâmico e multifacetado, se desdobrando numa infinidade de subgêneros – Death, thrash, grind, doom, gothic, etc.
Em vez de “reacionarismo” o que eu noto, atualmente, é uma grande estagnação estética e criativa: na primeira década do século XXI o mundo do rock nada fez além de se autocanibalizar em novas bandas com sonoridades datadas e derivativas. De uns dez anos pra cá, nem isso. Um verdadeiro deserto. Mas isso se deve, a meu ver, à própria característica fragmentária do mundo em que vivemos, eternamente imerso num oceano infinito de distração do qual é necessário um esforço tremendo para submergir.
Criar algo realmente novo, este é o grande desafio.
*Até aqui por Alexandre Matias
A.
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terça-feira, 11 de julho de 2017

O Fim está chegando ...

Quando se joga o jogo dos tronos, você aprende a esperar o inesperado. Mesmo assim, a mais recente temporada de Game of Thrones fez algo totalmente sem precedentes na história da série da HBO: ela ficou menos complicada conforme foi passando, e não mais.
Sim, estamos perto do encerramento, o que significa que muitos dos jogadores mais importantes já foram empurrados para fora do tabuleiro no ano passado. Agora, o Rei do Norte Jon Snow, a Rainha dos Sete Reinos Cersei Lannister e a Mãe de Dragões Daenerys Targaryen estão no devido comando de seus respectivos reinos. Enquanto isso, ao norte da Muralha, a ameaça dos Caminhantes Brancos e o inverno infinito deles está cada vez mais perto. Esta é a verdadeira guerra, que tem sido apenas facilitada por todas as disputas entre diferentes grupos de humanos.

E se o verdadeiro inimigo está prestes a dar as caras, você não gostaria de ir à batalha sem estar bem informado, né? Foi por isso que preparamos este guia, organizado por região, sobre como tudo e todos estavam antes do pontapé inicial da nova temporada, que acontece no domingo, 16 de julho, pela HBO.

O Norte
Em uma das maiores reviravoltas da série, Jon Snow deixou o título de bastardo para trás e se tornou um monarca, assim como o meio-irmão. Depois de ter sido ressuscitado pela Sacerdotisa Vermelha Melisandre, ele rapidamente executou aqueles que haviam se voltado contra ele na Patrulha da Noite e restaurou sua posição como Senhor Comandante, antes de entregar as rédeas ao amigo “Dolorous” Edd Tollett.
Isso deixou Lord Snow livre para lutar a batalha pela libertação de Winterfell, sua casa, das garras de Ramsay Bolton, que matou o próprio pai para reivindicar o castelo para si. A subsequente “Batalha dos Bastardos” teve custo alto – entre as fatalidades, Rickon, jovem irmão de Jon, e Wun-Wun, o último dos gigantes – mas terminou em vitória para a Aliança do Norte. Deve-se dar crédito a Sansa pela vitória, já que ela conseguiu que os Cavaleiros do Vale, comandados pelo assustador guardião dela, Petyr “Littlefinger” Baelish, se juntassem aos esforços do meio-irmão. A Senhora Stark também se vingou do marido dela, Ramsay, fazendo com que ele fosse servido como jantar para os próprios cães.
Dessa forma, Jon acabou tendo controle sobre uma das maiores forças em Westeros, mas também a mais desorganizada. O grupo variado inclui os selvagens, liderados por Tormund Giantsbane; os nobres que são tradicionalmente leais à Casa Stark, com destaque para a jovem líder da Ilha dos Ursos, Lyanna Mormont; e os Lordes do Vale, encabeçados por Bronze Yohn Royce. Jon tem o apoio de Sansa também, ao menos por enquanto; Littlefinger já está procurando uma maneira de provocar a discórdia entre os irmãos.
Mas ele não pode mais contar com a mágica de Melisandre: o Rei Snow exilou a Mulher Vermelha, seguindo as sugestões do conselheiro Ser Davos Seaworth, que descobriu o papel que ela teve na morte da filha do Lord Stannis Baratheon na fogueira. Jon também não pode mais depender de Samwell Tarly: ele enviou o melhor amigo, Gilly, que é a namorada de Sam, e o filho dos dois para a Cidadela de Vilavelha, onde o patrulheiro da Patrulha da Noite vai estudar para se tornar um Meistre. Nossa aposta, no entanto, é que ele não terá uma vida tranquila de estudioso: Sam havia roubado do pai, Randyll, a espada de aço valiriano – uma das únicas armas que podem matar um Caminhante Branco.
De volta na Muralha, o Senhor Comandante Dolorous Edd tem poder sobre uma reduzida Patrulha da Noite. O grande defensor da construção pode muito bem ser Bran, o meio-irmão de Jon. Treinado para utilizar suas habilidades psíquicas pelo velho feiticeiro conhecido como o Corvo de Três Olhos, o jovem Stark por pouco não escapou dos Caminhantes Brancos e seu exército zumbi, liderado pelo nêmesis dele, o Rei da Noite. O ataque acabou com as vidas do mentor de Bran, seu lobo gigante e, tragicamente, o guardião dele, Hodor, que teve sua deficiência causada pela presença de Bran, cuja mente é capaz de viajar no tempo e gera esse tipo de dano a sua volta. O comando da amiga deles, Meera Reed, para segurar a porta (“hold the door”, em inglês) frente ao ataque dos zumbis ficou tão marcado na mente do guardião na juventude que uma versão encurtada, “ho-dor”, se tornou a única palavra que ele conseguia dizer.
Agora, Bran e Meera estão voltando à Muralha acompanhados do tio de Bran, Benjen Stark, um patrulheiro da Patrulha da Noite que desapareceu na primeira temporada da série; agora ele é um morto-vivo também, mas do tipo do bem, revivido pelos agora extintos Filhos da Floresta. Juntos, eles carregam o segredo, também revelado por meio da viagem no tempo, de que Jon Snow é, na verdade, o filho secreto da falecida Lyanna Stark e o herdeiro do Trono de Ferro de Rhaegar Targaryen. De fato, o Rei do Norte.

As Terras Fluviais
Se houver alguma surpresa na próxima temporada, ela virá dessa região central. Aqui está Arya, a mais mortal dos Stark sobreviventes. Após os ensinamentos dos assassinos mágicos Homens Sem Rosto na cidade livre de Bravos, ela decidiu que o estilo mercenário deles não era a praia dela. Depois de matar a rival Criança Abandonada (Waif), ela deixou a cidade com uma aparente bênção do mentor Jaqen H’ghar e retornou aos Sete Reinos. Lá, utilizando suas habilidades de disfarce, ela se infiltrou na fortaleza de Walder Frey, o velho grisalho que orquestrou o infame Casamento Vermelho. Primeiro, ela matou os filhos dele e os serviu ao pai dentro de uma torta. Depois, ela cortou a garganta dele.
Antigo companheiro de Arya, Sandor “Cão de Caça” Clegane também está vagando pela região. Após a jovem Stark deixá-lo para trás para morrer, ele se recuperou e se juntou a uma comunidade religiosa que, subsequentemente, foi assassinada por agentes da Irmandade Sem Bandeiras, a guerrilha liderada por Beric Dondarrion e Thoros de Myr, o Sacerdote Vermelho que o trouxe de volta à vida várias vezes. O Cão rastreou os assassinos dos amigos dele e ajudou enforcá-los pelos crimes, antes de concordar em se juntar aos ex-inimigos da Irmandade na batalha que está por vir.
Também perdida nessa região assolada pela guerra está a mulher que derrotou o Cão, Brienne de Tarth. Jurada a servir Sansa Stark, a Donzela de Tarth e o escudeiro Podrick Payne foram mandados ao sul em uma missão ordenada por Brynden "Peixe Negro" Tully, tio de Catelyn, a falecida mãe de Sansa. Ele havia saído ileso do Casamento Vermelho e comandou as forças restantes do falecido Robb Stark. Quando Brienne chegou lá, Jaime Lannister já havia chegado para acabar com o sítio da cidadela, utilizando o sobrinho refém de Peixe Negro, Edmure (o noivo de fato do Casamento Vermelho), para mediar a rendição. O Peixe Negro caiu na batalha, fazendo com que Brienne e o jovem escudeiro tivessem que fugir, deixando o Regicida para trás.
Finalmente, há um verdadeiro coringa no baralho. Euron Greyjoy. Na costa das Terras Fluviais estão as Ilhas de Ferro, governadas até a mais recente temporada pelo Rei Balon Greyjoy. Sem aviso, o jovem irmão pirata dele reapareceu, assassinando o velho monarca em meio a pronunciamentos pretensiosos como “Eu sou a tempestade”. O recém-chegado ganhou o chamado Trono de Sal em uma espécie de “votação” para escolher o novo líder, e logo depois declarou guerra contra a sobrinha e o sobrinho, Yara e Theon, que haviam acabado de se reunir. Os jovens escaparam das garras do mais velho, mas isso só deixa a nova frota de Euron livre para atacar, basicamente, quem ele quiser.

Porto Real
Na capital dos Sete Reinos, Cersei Lannister é o único nome que importa. Ela emergiu da sexta temporada como a inegável governante do centro de poder de Westeros, tudo o que foi preciso para fazer isso acontecer foi causar uma explosão apocalíptica de fogovivo. O caos que se seguiu matou o Alto Pardal, a rival dela, Rainha Margaery, o irmão de Margaery, Loras, o pai deles, Mace, o tio dela e Mão do Rei, Kevan Lannister, e o primo traidor dela, Lancel Lannister, de uma vez só. O subsequente suicídio do filho dela, Rei Tommen, foi uma tragédia, certamente. Mas fez com que Cersei finalmente reivindicasse o Trono de Ferro para ela mesma. Agora, está contando com o irmão/amante Jaime, o conselheiro em magia negra Qyburn e o segurança morto-vivo Gregor “A Montanha” Clegane, conhecido como Ser Robert Strong, para a ajudar a manter o controle.

O Leste
Depois de meia dúzia de anos, Daenerys Targaryen está seguindo em direção ao oeste para tomar os Sete Reinos. Um longo caminho foi percorrido desde o começo da temporada passada: sozinha e desesperada, uma prisioneira dos Senhores dos Cavalos e até abandonada pelo dragão que a havia salvado da insurgência em Meereen. Mas graças aos poderes dela, ela queimou todos os Khals que passaram por seu caminho e emergiu como a líder do povo Dothraki antes de retornar para completar a libertação da Baía dos Escravos.
Agora ela está navegando em direção a Westeros com uma aliança que envergonharia a equipe de Jon Snow. Há três dragões, Drogon, Viserion e Rhaegal – os dois últimos foram recentemente libertados do cativeiro em que ela os havia colocado. Há também o khalasar massivo de guerreiros à cavalo e as tropas terrestres deles, equivalentes aos Imaculados, liderados pelo capitão Grey Worm. Ela ainda tem três frotas de Westeros dando apoiando: os navios da Casa Greyjoy, encabeçados por Yara e Theon; aqueles da Casa Tyrell, comandados pela chamada Rainha dos Espinhos Senhora Olenna; e aqueles de Dorne, liderados por Ellaria Sand e suas três filhas guerreiras, conhecidas como as Serpentes de Areia.
Daenerys deixou dois aliados-chave fora da missão dela. O amante dela, o capitão Daario Naharis, foi deixado atrás para manter a paz em Meereen; e o conselheiro exilado dela, o apaixonado Ser Jorah Mormont, que foi mandado em busca de uma cura para Greyscale, a doença que ele contraiu enquanto navegava de volta à Meereen para oferecer seus serviços à Daenerys.
Mas o grupo reunido pela Mãe de Dragões é impressionante de qualquer forma. Em adição aos vários almirantes e comandantes militares dela, ela pode contar com sua intérprete e braço direito Missandei; o eunuco mestre dos espiões Lorde Varys; e, é claro, Tyrion Lannister, o homem mais astuto – e procurado – de Westeros. A hora do anão está chegando.

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segunda-feira, 5 de junho de 2017

VERMES DO SISTEMA

Eu tinha vinte e poucos anos no início da década de 1990 e era muito fã dos Ratos de Porão, clássica banda de punk rock hard core paulistana. Nunca os tinha visto ao vivo, no entanto. Sonhava com isso. Quando soube que iriam tocar ali do lado, em Salvador, imediatamente me pus a postos para a empreitada. Mal sabia o que me esperava ...

O rock “underground” em Salvador não era para os fracos. Eu já tinha ouvido algumas histórias “cabulosas” a respeito, mas não dei importância – ou me considerava “um forte”, como os sertanejos de Euclides da Cunha. Eu iria àquele show, de qualquer jeito. Era questão de honra. Calhou que uma amiga também ia e me ofereceu companhia e estadia grátis, mas foi logo avisando: ela ia ficar com os punks, mais precisamente com os membros de uma “gangue” relativamente famosa na época, a VS – Vermes do sistema. Namorava um deles. A alcunha não soava alvissareira,  mas me enchi de coragem – sou de Itabaiana, porra! – e disse que sim, ia junto.

Fomos recebidos na rodoviária pelo referido consorte e nos deslocamos a um bairro periférico onde a turma iria se encontrar. E que turma! Eram todos chamados por apelidos “fofos”: Decadência,  Minério, Esgoto, Bebedeira e Olho Sêco. Foi nesse dia que eu conheci Morcego, um cara divertido com uma personalidade magnética, vocalista de uma banda chamada “Azucrinação”, que depois se tornaria a lendária “Bosta Rala” – por aí o nobre leitor pode ter uma idéia do “naipe” das criaturas. Mas tudo bem: os caras já me conheciam de um festival que eu havia ajudado Silvio da Karne Krua a organizar no qual a gente fez um acordo camarada para que eles pudessem entrar praticamente de graça – pegamos umas camisetas em troca dos ingressos. Não esqueço de uma cena inusitada, neste festival: a diretora do Teatro Lourival Batista servindo um cafezinho aos punks soteropolitanos – desconfio seriamente que tanta simpatia era mais por medo que por gentileza – quando um deles sentou-se no sofá e cruzou as pernas, mas sua calça estava tão detonada e rasgada que dava para ver seus “documentos”, os colhões “vazando” por um buraco entre os molambos. Tosco demais ...

Eu era o “brother de Aracaju”, portanto. Apesar de ser cabeludo, me consideravam. Chegou a hora do show e lá fomos nós – os punks iam apenas pra ficar na porta e tentar encontrar o Gordo do Ratos para chamá-lo de traidor. Se possível, espancá-lo, também. Ônibus lotadíssimo, um sufoco. Viagem longuíssima, pensei que não chegaria nunca. Estranhei terem todos passados pela catraca sem pagar, mas depois descobri que era o costume, no meio da viagem o cobrador saía circulando naquele aperto desgraçado cobrando de um por um. Mais tosqueira, portanto. Sério,foi uma viagem horrível – tava MUITO apertado, aquele “busu” ...

Finalmente chegamos ao que eu pensava que seria o destino final, mas para minha surpresa nossos companheiros de desventura começaram a se aboletar nas carrocerias de três carros de lixo! Sim, a segunda parte da viagem seria feita de carona com a limpeza pública! Lembro que fiquei paralisado, tentando entender o que estava acontecendo, até que ouvi um deles me alertar para subir logo, se não quisesse ficar pra trás. Fui, né. Fedor desgraçado, mas fazer o que ...

O local do evento era um clube na orla, a Danceteria “Krypton”. Acho que entrei sozinho – não me lembro bem. Minha amiga tinha ido só pelo “role” mesmo, também considerava os ratos traidores do movimento – e veja só como o mundo dá voltas, logo depois ela largou dessa história de ser punk e virou crente - da Igreja Universal! Como eu não era do tal movimento, tava liberado da patrulha ideológica. Gostei do show, claro, apesar de fazer parte da turnê de um disco, “Anarkophobia”,  que eu não havia gostado tanto quanto o anterior, “Brasil”. Na época eu era um jovem “afoito” e costumava freqüentar as rodas de “pogo” de minha cidade, mas naquela noite descobri que em Salvador a coisa era bem diferente: me arrisquei e fui completamente moído de pancada, triturado e jogado de volta à parede onde havia me abrigado em questão de segundos. Me aquietei e me conformei em ficar só vendo de longe aquele verdadeiro clube da luta.

Saí todo feliz mas me perguntando se teria que dormir na rua. Felizmente meus cicerones  ainda estavam por lá, não haviam me abandonado. Teria, portanto, um teto para me abrigar. Assim esperava. A viagem de volta foi igualmente tosca: os caras foram o caminho inteiro abordando “metaleiros” e tomando suas camisetas na base da pancada, sempre com o cuidado de me acalmar, que eu não me preocupasse, pois eu era brother, de Aracaju. Saltamos do ônibus e foi mencionada a intenção de fazermos um lanche antes de dormir, o que muito me agradou, pois estava morrendo de fome, mas com medo de propor o “pit stop” e ser tachado de playboy. Pra variar, a coisa não era bem como eu esperava: o lanche dos caras eram restos de frutas do lixo de uma feira que havia acabado. Lembro que comi um pedaço de maçã meio apodrecido, mas ainda aproveitável. Nem passou pela minha cabeça recusar, nem fazer cara de “nojinho”. Já a casa onde ficaríamos era um barraco numa favela, quente, apertadíssimo e cheio de muriçocas. Dormi no chão de terra batida, não havia piso. Quer dizer, tentei dormir. Não consegui, tive uma crise de asma.

Voltei para a rodoviária todo sujo de terra, com medo de ser confundido com um mendigo e ter negada minha entrada no ônibus, mas consegui voltar pra casa são e salvo. Foi a primeira de muitas viagens que fiz a Salvador, sempre em busca de rock “doido”, e de onde voltava sempre com histórias toscas para contar. Porque, segundo os Retrofoguetes,  como dizia a Irmã Dulce, “quem tá no rock é pra se fuder”.

NOTA: Texto publicado originalmente no jornal Folha da Praia. Talvez seja o primeiro de uma série de relatos sobre minhas andanças no mundo do rock subterrâneo ...

A

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