domingo, 22 de fevereiro de 2015

Michael Moore, uma entrevista ...

Em 18 de janeiro, dois dias depois do lançamento de Sniper Americano, de Clint Eastwood, Michael Moore tuitou: "Meu tio foi morto por um sniper na Segunda Guerra Mundial. Aprendemos que snipers eram covardes. Atiram pelas costas. Snipers não são heróis. E invasores são piores"; em seguida, continuou: "Mas, se você estiver no teto da sua casa se defendendo de invasores que vieram de 11 mil km de distância, você não é sniper – você é corajoso, é um vizinho". A repercussão negativa da direita foi rápida e barulhenta. Breitbart chamou os tuítes de "trolagem patética", John McCain disse que essas colocações foram "idiotas" e "ultrajantes" e Kid Rock escreveu no seu site: "Vai se foder, Michael Moore, você é um bosta e seu tio teria vergonha de você". Mas a reação mais dramática aos tuítes veio de Sarah Palin, que posou ao lado do sargento Dakota Meyer, condecorado com a Medalha de Honra, com um cartaz escrito"Vai se foder, Michael Moore". Os dois Os do nome do cineasta foram substituídos por duas miras.

Depois de atrair críticas da direita e da esquerda, Palin defendeu a foto durante um discurso bizarro e incoerente na Cúpula pela Liberdade de Iowa, no sábado seguinte, afirmando: "O que o cartaz disse é o que todos nós estamos pensando". Moore, de sua parte, não apareceu na TV nem reagiu à polêmica para além de alguns posts no Twitter e no Facebook, mas aceitou falar longamente com Eddy Moretti, da VICE, sobre sua opinião a respeito de Sniper Americano, franco-atiradores em geral, Sarah Palin, transtorno de estresse pós-traumático, a vez em que Clint Eastwood o ameaçou de morte e um monte de outras questões que estão circulando no circo da mídia no momento.

VICE: Oi, Michael. Vamos começar com os seus tuítes: antes de falar sobre a reação que eles desencadearam e te dar a oportunidade de esclarecer o que você quis dizer, o que te inspirou a escrevê-los e como você se sentia emocionalmente quando postou?

Michael Moore:Bom, a primeira coisa que eu diria é que não sinto nenhuma necessidade de esclarecer ou defender o que escrevi. Tenho orgulho do que escrevi. Não volto atrás em nada e, aliás, só acrescentei mais coisas. Não me assusto com essas pessoas que aterrorizaram uma nação inteira para entrar em uma guerra ilegal e sem sentido. Então, mesmo, em termos de impacto, isso não tem nenhum em mim. Eu disse o que disse. Claro, se estivesse errado ou tivesse cometido um erro, com certeza corrigiria, mas não é o caso. E fico meio mal quando vejo na TV ou escuto outras pessoas falando, tipo: "O Michael Moore voltou atrás". Bom, isso não aconteceu. Não me desculpo pelas minhas opiniões fortes no sentido de como quero que o belicismo neste país acabe.

E acho que o motivo pelo qual estamos tendo esta conversa também – e não falei sobre isso com mais ninguém, recusei todos os pedidos de programas de TV – é que o problema do Twitter e por que você precisa... vamos usar a palavra esclarecer: é porque 140 caracteres não conseguem expressar coisas que têm uma profundidade enorme. Então, postar no Facebook e falar com você me dá uma boa oportunidade de acrescentar ao que eu disse no Twitter.

O que me chamou atenção é que tem duas coisas que você está discutindo em mídias diferentes. No Twitter, você fala sobre a questão dos snipers, que é um assunto fascinante e que merece um pouco mais de discussão, e aí tem o filme chamado Sniper Americano.E parece que você está falando de duas coisas diferentes. Estou certo? 

Correto. Intencionalmente, não falei nada sobre Sniper Americano nos primeiros tuítes. Com certeza, escrevi o que escrevi, porque,naquele fim de semana, estava se falando muito sobre snipers por causa do filme, mas também porque era o fim de semana do dia de Martin Luther King e achei indelicado que uma coisa chamada Sniper Americano, um filme sobre um franco-atirador, fosse lançado no fim de semana em que homenageamos um grande americano que foi morto por um. E, se ninguém vê nada de errado com isso, como você se sentiria se anunciassem amanhã que o Sniper Americano 2 vai ser lançado no dia 22 de novembro (dia da morte de John F. Kennedy)?

É, não fariam um filme sobre algum tipo de ataque catastrófico e lançariam no dia 11 de setembro, por exemplo.

Exatamente. Uma loja de eletrodomésticos não vai fazer um anúncio no Dia da Memória do Holocausto do tipo: "Hoje, promoção de fornos". Quer dizer, esse seria o exemplo mais extremo e bizarro, mas mostra um pouco de falta de sensibilidade. Ou será que mostra? Vai ver que o plano era: "Bom, acabaram de lançar Selma. Será que os brancos vão assistir a esse filme? Vamos oferecer alguma coisa para os brancos assistirem no fim de semana de Martin Luther King". Sei lá, foi muito desconfortável. Isso me fez pensar em snipers, e se precisa ter crescido na minha família para entender a indignação intensa que a ideia do franco-atirador criou.

O nome do meu tio era Lawrence Moore, mas chamavam ele de Lornie. O tio Lornie foi uma pessoa que não conheci, porque nasci nove anos depois da guerra, mas, desde muito cedo, estava claro para mim que a morte dele tinha afetado muito a família. O impacto na minha avó foi muito intenso. Quando finalmente mandaram o corpo dele de volta e enterraram no cemitério católico de Flint, ela convenceu o marido a saírem da casa deles. Eles se mudaram para uma casa a duas portas do cemitério. E ela ia lá todo dia visitar o túmulo dele. E, para piorar ainda mais, a placa militar enviada para o túmulo pelo Departamento da Guerra – era assim que chamava antes de virar Pentágono – não tinha o nome do Lornie, nem Lawrence Moore, mas Herbert Moore, que era o marido dela, meu avô, Herbert (eles também tinham um filho, outro dos meus tios, chamado Herbert). Então, não tem nem o nome dele na lápide.

Era um ritual que acontecia duas ou três vezes por ano com todas as crianças: ir lá e colocar bandeiras no túmulo. Ele era um irmão querido. Para todas as tias e tios, ele era querido, o gentil, aquele que todos procuravam, e isso impactou muito a família. Sabe? A batalha já tinha acabado nas Filipinas e eles tinham ganhado, essencialmente. Eles estavam na província de Luzon marchando para a base por uma estrada. Os soldados japoneses eram conhecidos por não desistir, e um franco-atirador em cima de uma árvore atirou por trás na cabeça dele e o matou na hora. Eles simplesmente não entendiam que tinha acabado, por que é que... que ato absolutamente covarde.

Postei também um segundo tuíte imediatamente, porque quis esclarecer o que eu queria dizer com "sniper". Um sniper, para mim, é a pessoa da força invasora. É o soldado e as pessoas que estão fazendo errado, que sobem nos prédios ou em árvores, e se escondem, e derrubam pessoas sem elas saberem, sem sequer terem a chance de contra-atacar. Se as tropas de outro país estivessem marchando pela Broadway e alguém subisse num prédio para tentar pará-los, de jeito nenhum, isso não é um sniper. É um defensor ou defensora da sua casa. Assim como a pessoa que era o sniper, o franco-atirador árabe em Sniper Americano: o que ele estava fazendo? Estava tentando impedir a força invasora.

Antigamente, os snipers eram chamados de "sharpshooters" ou "marksmen" (atiradores de elite). Só foram começar a ser chamados de snipers na Primeira Guerra Mundial – e foram os alemães nessa época que aperfeiçoaram o conceito de sniper, não os aliados. E aí isso continuou. Na Segunda Guerra –acho que dá para procurar isso –, dois terços de todas as mortes provocadas por franco-atiradores foram por soldados alemães e japoneses. E, com o desenrolar da guerra, os russos descobriram como fazer isso. O que o Eisenhower fez em 1956, 1957: tinha a escola americana de snipers no Campo Perry em Ohio, e ele fechou.

Por quê?

Não sei. Quer dizer, fiz umas pesquisas nesta semana. Ele ficou fechado 30 anos, até que o Reagan reabriu em 1987 no Forte Benning. Depois da guerra da Coreia, se falava muito – um veterano me contou essa história – que isso não tinha muito a cara dos americanos. Os franco-atiradores são muito necessários para a força invasora. Com o lado que se defende, a caça acontece de muitas formas. Tipo, se fôssemos atacados, todos nos tornaríamos, como tal, snipers, se você quisesse usar essa palavra. Mas, quando chegam os libertadores, são os snipers que matam os libertadores. E essa é a confusão, obviamente, quando você assiste à FOX News. Quer dizer: falando sobre Sniper Americano, eles falam dos soldados americanos como libertadores do Iraque! Não libertamos nada. Aliás, pioramos a situação e perdemos a guerra! Coloca isso aí na coluna das perdas. E as pessoas deviam treinar dizer isso. Será melhor no futuro se conseguirmos dizer que perdemos no Vietnã, perdemos no Iraque, perdemos no Afeganistão. Por que inventamos esse conto de fadas sobre nós mesmos? Não ajuda em nada e só vai fazer a gente ter mais problema no futuro.

A direita no país está defendendo esse filme e ele vem tendo muito sucesso. Se você presumir que um filme faz sucesso porque as pessoas amam o personagem principal, poderia-se dizer que os americanos estão adorando esse atirador, certo? Por que você acha que isso acontece? Você está certo: em geral, os snipers sempre foram uma ameaça. É sempre o coitado pego na praça que leva o tiro e o franco-atirador está sempre escondido, numa atitude sorrateira. Mas o que esse sniper está fazendo para a consciência coletiva norte-americana que tanto satisfaz as pessoas e estimula a ida ao cinema? Tem um psicodrama incrível acontecendo em torno desse filme no nível psicológico nacional. 

Sim, e tem a ver com o fato de que, psicologicamente, sabemos que estamos errados. Sabemos que não havia armas de destruição em massa. Sabemos que 4.400 jovens americanos perderam suas vidas e inúmeras dezenas de milhares de iraquianos. Sabemos disso tudo – e sério, no fundo, é uma culpa muito arraigada.

Além disso, muitos republicanos órfãos da Guerra Fria que também vão ao cinema não vivem numa bolha. Eles têm familiares ou vizinhos, pessoas que voltaram dessa guerra transtornadas. Temos um problema enorme de transtorno de estresse pós-traumático. Temos um problema psicológico enorme aqui com os soldados que voltaram dessa guerra. E vou te dizer: nas duas vezes a que assisti, no final fica um silêncio. Ninguém comemora. Mesmo quando o Bradley Cooper mata o Mustafa, o sniper árabe, não rolou um "uhuu". E acredite: assisti com um público que não está do meu lado do muro político. E eles ficaram muito abalados, muito tristes. Todo personagem principal do filme acaba ficando perturbado pela guerra ou morre. E não é uma celebração disso. As pessoas podem entrar no cinema pensando "Ha ha!", mas não saem dizendo "Ha ha!".

A última coisa que vou dizer é que muita gente quer assistir agora por causa da polêmica e também porque foi indicado a Melhor Filme, e as pessoas querem ver o melhor filme. Além disso, é o Clint Eastwood: ele já fez alguns dos melhores filmes. Então, tem muitos motivos para as pessoas assistirem, mas vou te dizer: assisti na segunda noite na Union Square, e não tinha uma pessoa sequer que morasse no Village naquele cinema. Só tinha gente que pegou o trem de Nova Jersey ou de Long Island. E a pesquisa foi feita: o estúdio quer saber quem vai ao cinema. E o público desse filme é formado por pessoas que vão ao cinema uma vez por ano ou [por] gente que nunca vai ao cinema. É o público de A Paixão de Cristo que está nessas salas.

Vamos voltar um pouco à questão do sniper e à distinção que você faz entre comentários sobre snipers e sobre o filme Sniper Americano. Você tem uma conexão muito pessoal com o franco-atirador e seus efeitos, e não existem muitas histórias modernas sobre snipers que ecoem na consciência americana – tirando, talvez, se você voltar à Primeira e à Segunda Guerra Mundial, como você estava dizendo.

Só que, mesmo nessa época, se você tentar lembrar, não tem um sniper que, com o tempo, a sociedade aceitou como herói americano. Não faz parte da nossa cultura. Tem uma história famosa do Jesse James e do covarde que atirou nele pelas costas. Ele estava pendurando um quadro na parede da casa dele quando um cara chegou na janela, atirou e o matou. O Jesse James não é lembrado como o canalha. Ele era ladrão e assassino, mas o cara que o matou é o canalha na história que se contou.

Crescemos ouvindo histórias assim. Nossos pais contam, pelo menos para os meninos, que atacar alguém pelas costas é uma atitude covarde. Acertar alguém sem a pessoa te ver, vir por trás, isso é considerado errado. A própria palavra sniper: já ouviu a palavra sniping (tocaia, emboscada) ser usada de um jeito positivo?

Não, nunca.

Tem um contexto negativo. Não fui eu que inventei isso outro dia no Twitter. É uma crença comum, e é por isso que nunca fomos conhecidos pelos nossos chamados snipers. Nas guerras das quais participamos, sempre é o outro lado que tem snipers. E não é que a gente nunca tenha tido atiradores de elite. Pelo amor de Deus, eu já ganhei um prêmio de atirador de elite da NRA [Associação Nacional do Rifle americana] quando era criança. Mas acho que o sniper normalmente é associado com o lado do mal, o que está lesando, sejam os alemães nas duas guerras ou os japoneses no caso do meu tio.

Saiu outro filme agora chamado Corações de Ferro. Você já viu?

Já, já vi.

Também tem um franco-atirador no filme e, no fim, ele mata o herói americano. Então, parece que o valor do sniper está nos olhos de quem vê. É o sniper malvado camuflado que mata o Brad Pitt, que estava destruindo um batalhão de soldados da SS.

Eu gostei desse filme. É um filme de guerra bem feito e me deixou nervoso mesmo na cadeira do cinema. E antes, no filme, quando eles chegam na cidade onde tem outro sniper alemão, que era o problema de todos os americanos que chegavam nessas cidades. A força invasora, os alemães, estavam ocupando a cidade e tentando deter os libertadores. Eles não poderiam ganhar numa briga justa, e pode-se dizer que os americanos tinham mais tropas, mais dinheiro e mais poder de fogo. Mas também faço uma análise mais zen: [a de] que o opressor, o invasor, o agressor basicamente – não sempre, mas muitas vezes – em toda a História é derrotado. Em outras palavras, o bem triunfa sobre o mal. Com algumas exceções – os povos indígenas sendo, claro, uma óbvia.

Recebo um monte de e-mails de gente dizendo:"O Chris Kyle protegeu nossas tropas e salvou vidas". Bom, o que quer dizer isso: "salvou vidas"? As vidas dos nossos soldados não deveriam estar em risco para começo de conversa. Nós é que estávamos errados. Nós éramos a força invasora e acabamos perdendo. Fomos até lá com falsos pretextos e deixamos o lugar muito pior do que estava quando chegamos.

Considerando sua história e seus sentimentos pessoais a respeito do conceito de sniper, você pode descrever como se sentiu quando entrou na sala de cinema e também quando saiu?

Bom, fui na segunda noite da estreia. Só estava passando em quatro cinemas no país. Gosto do Clint Eastwood e queria ver esse filme. Sinceramente, o trailer e as propagandas na TV dele são melhores do que qualquer outro filme do ano. Mas, quando cheguei lá, da fila da pipoca até entrar no cinema, falei: "Nossa. Olha aí, estamos no Village e não tem ninguém do Village aqui". Daí umas pessoas me viram, e uma falou "Opa, que bom que você está aqui" e agradeceu pelo meu trabalho.

Fiquei muito feliz de estar lá com esse público, porque eles ficaram muito abalados. As pessoas choravam. Ficou claro que estávamos em um cinema com 800 veteranos, militares, familiares ou amigos, e pessoas que nunca vão no cinema. Aliás, a pessoa com quem eu estava ria porque eu meio que fiz as vias de lanterninha. Ir no cinema em Nova York é diferente de outros lugares, e as pessoas entravam, olhavam, não encontravam lugares para sentar juntas e entendiam como o sistema funciona. Elas estavam muito fora do seu habitat. Nem sei dizer, eu devo ter dito umas doze vezes: "Olha, tem ali em cima". E eles olhavam impressionados, porque não sacaram sozinhos. E eu perguntava para as pessoas: "Você pode tirar esses casacos daqui? Pode deixar esse casal sentar?" Parecia que eles estavam muito confusos, com uma cara que eu provavelmente faria se estivesse tentando achar um lugar para sentar na sociedade de debates de Oxford.

Enfim, fiquei muito feliz de estar lá com esse público, porque eles ficaram muito abalados. As pessoas choravam. Elas estavam reagindo àquilo. Nos créditos finais, não tinha música, foi muito sombrio. Todo personagem principal do filme acaba transtornado pela guerra, se volta contra a guerra ou morre. Não tem uma vitória norte-americana a se comemorar no final e não tem ocasião de olha só o que fizemos, ou como no fim de O Resgate do Soldado Ryan, em que você vê o Tom Hanks morrendo, mas no fundo você pensa: Bom, ele não morreu em vão. Não tem nada disso nesse filme. Não tem catarse. Conversei com a Deb, que organiza meu festival de cinema em Traverse City, e ela disse a mesma coisa. Ela foi assistir no shopping. E disse que foi triste do começo ao fim. Disse que tinha muita gente conversando durante o filme, a maioria fazendo perguntas porque não entendia a política, não entendiam a coisa xiita-sunita, e perguntavam: De que lado ele está? Tinha muita ignorância na plateia.

Mas é interessante. Vi hoje que ele vai quebrar o recorde de bilheteria de filme recomendado para maiores de 17 anos, que até agora era de A Paixão de Cristo. E acho que estão descobrindo que o público é muito parecido. Não são pessoas que normalmente vão ao cinema, e se vão, não vão com muita frequência. Cinquenta por cento do público norte-americano nunca vai ao cinema. E outros 25% que vão só vão uma vez por ano. O público que frequenta o cinema são esses últimos 25%. Parecia mesmo o público de A Paixão de Cristo. Gente que normalmente esperaria sair em vídeo ou veria na TV, mas queria esse sentimento coletivo de sentar lá com os outros.

Deixando de lado suas questões com snipers e a política da guerra, seria justo dizer que você não tem nenhuma questão com o filme enquanto produção?

O filme em si não comento normalmente, se você segue meu Twitter. Eu, como muitos cineastas e diretores, tem meio que um código informal implícito de que não criticamos os filmes uns dos outros. Se não gostamos de um filme de outro diretor, não dizemos nada. Se gostamos, aí falamos aos quatro ventos e incentivamos as pessoas a assistirem. É por isso que é raro encontrar um cineasta atacando outro por um filme. Porque todos nós sabemos como é difícil fazer um bom filme. A única vez que fiz isso no passado foi quando me senti muito mal por tanta gente, principalmente trabalhadores, que estava pagando para ver uma coisa que disseram que era uma coisa e não era, e aí eles ficariam péssimos. Eles dão duro a semana toda, e hoje é muito caro ir ao cinema, comprar um doce e coisas para as crianças. É o que acho. Então, sobre o filme, eu não disse nada nos primeiros dois tuítes. E depois, quando finalmente escrevi mais do que 140 caracteres, quando fui no Facebook e disse: "Bom, não vou dizer nada sobre Sniper Americano, mas vou dizer o seguinte: Bradley Cooper, uma das melhores atuações do ano". Sem dúvida. Como ele se transforma... você nem pensa que é o Bradley Cooper.

Steve Carell fez a mesma coisa em Fox Catcher. Muito rapidamente, aquele cara "Steve Carell" some e no lugar aparece um monstro.

Exatamente. Esse é o sinal de um bom ator; então, esse é o meu primeiro comentário positivo sobre o filme. A segunda coisa é que, tecnicamente, é um filme bem feito. Acho que houve algumas boas escolhas em termos de... foi muito ousado não colocar uma música no final, só os créditos subindo no escuro. Preto e silencioso. Como história, acho que é aí que o filme fica um pouco complicado para mim, porque o Clint basicamente quer fazer um faroeste das antigas – tudo muito simples e sem complicar as coisas. Por exemplo: as Torres Gêmeas foram atacadas, eles são chamados e, de repente, estão no Iraque.

Se você não presta atenção em nada, basicamente o filme diz: "Fomos atacados e aí contra-atacamos no Iraque". Claro, sabemos que o Iraque não teve nada a ver com o 11 de setembro, mas o filme deixa implícito que tem e que essa é a missão em que ele está para defender nosso país. Mas não estamos sendo defendidos por ele estar no Iraque. Você pode defender que ir ao Afeganistão para detê-los, e tentar pegar o Bin Laden e tudo isso, que teve alguma legitimidade. Mas, antes, estava tudo nas mãos de um comandante-chefe incompetente, e o novo chefe levou 13 meses – se tanto – para fazer o trabalho que o Bush teve oito anos para fazer: pegar o assassino em massa. Então, tem problemas de narrativa no filme, e acho que é por isso que as pessoas na plateia ficavam falando, porque estavam confusas. Sniper Americano cobre o que parece cerca de cinco ou seis anos, ou três ou quatro incursões no Iraque, e é tipo: "Como é que ele sempre acaba na mesma cidade com aquele mesmo cara?". É meio bobo nesse jeito faroeste das antigas. Foi meio filme B nesse sentido. E, claro, tem todas as coisas históricas que estão erradas, mas não queremos entrar nisso. É um filme. Não estou assistindo como documentário.

Mas acho que as pessoas ficam muito abaladas com o que fizemos e continuaremos a nos abalar com isso. Onde eu moro, em Traverse City, criei programas de apoio a veteranos com transtorno de estresse pós-traumático. Faço conferências para encontrar empregos, montei o primeiro programa de ação afirmativa para contratar especificamente veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão, e qualquer militar da ativa e familiares pode entrar nos meus cinemas de graça todos os dias do ano: eles não pagam um centavo. Não são muitas empresas que oferecem coisas de graça todo dia do ano para militares da ativa. E tem três cinemas que restaurei, são todos sem fins lucrativos. Montei para que sejam das comunidades onde estão localizados.

O filme está passando no seu próprio cinema, né?

É, estou exibindo o filme em um dos três cinemas. E isso é porque acho que faz parte do debate americano e as pessoas devem assistir. Não dá para falar sobre ele sem ter visto. Vi o John McCain me criticando ontem pelo que eu disse sobre os snipers em geral, e um repórter perguntou para ele se ele tinha visto o filme, e ele disse: "Não, ainda não vi". Isso me fez lembrar de quando ele foi no Lettermane criticou o 9/11,e o Letterman falou: "O senhor viu o filme?". E ele disse: "Não, ainda não vi". E o Letterman disse: "Senador, o senhor acha que é certo criticar coisas que o senhor não viu?". E ele respondeu: "Não, você deve estar certo. Preciso assistir".

Eu não passaria Transformers 5, porque é uma merda. Mas esse não é uma merda de filme. E, aliás, o Clint Eastwood até disse que tem um sentimento muito forte contrário à guerra no filme. Me diga, Eddy: quando você saiu do cinema depois de assistir, você pensou: "Que ótimo filme para recrutar jovens para o serviço militar?".

Acho que eu meio que me preparei para uma propaganda de direita quando fui ver o filme. Quando assisti, fiquei assustado, porque parecia um jogo de FPS. Pensei que isso tem um potencial muito perigoso. Se as pessoas achassem emocionante e pensassem: "Nossa, o Iraque é uma versão na vida real de um jogo de videogame que estou jogando. Legal". Então, foi um momento alarmante. Mas fiquei vidrado o filme todo. Não tirei os olhos da tela em nenhum momento. Então, é: fui preocupado e achei que o filme justificou, sim, a preocupação, mas agora, falando com você, talvez tenha uma mensagem contrária à guerra ali.

Tá, primeiro ele encontra o irmão na pista. Ele fica muito feliz de ver o irmão, que vai pegar um avião para ir embora de lá. Você vê que o coitado está completamente traumatizado. O sniper americano, Chris Kyle, está todo animado de vê-lo, e aí o irmão finalmente conta a verdade para ele: "Que se foda este lugar". Quantas vezes já ouvi isso dito por caras que voltam de lá? "Que se foda esse lugar". E aí o melhor amigo dele é morto: ele vai ao velório com a esposa, e a viúva do amigo lê a última carta que ele mandou, uma carta contra a guerra. Entende? A guerra é um erro.

Clint Eastwood não é um ideólogo da direita. Ele é uma miscelânea maluca politicamente. E, na verdade, ele é um libertário. Se quiser rotulá-lo, deve ser provavelmente nisso que ele acredita politicamente. Não acho que ele acredite que os Estados Unidos deveriam ser a polícia do mundo. Já é muita coisa mostrar que o irmão é contra a guerra, o melhor amigo é contra guerra. Parece que o Chris é o único que está tipo "Uhuu!". Todo mundo olha para ele do tipo: "Está louco? Vamos abaixar a cabeça e cair fora daqui o mais rápido possível, porra."

Todo mundo sabe da mentira que o Chris fica dizendo para si mesmo: de que vale a pena. Ele tem de repetir isso, porque provavelmente sabe, no fundo do coração, que não vale nada a pena. Não tem nada a ver com defender os Estados Unidos da América, que é o único trabalho deles. É para isso que pagamos nossos impostos. Para que, se formos atacados ou alguma coisa nos ameaçar, sejamos protegidos. Isso não estava nos ameaçando. O Iraque não estava nos atacando e não estava planejando nos atacar.

Lancei um livro de cartas de soldados, porque recebi muitas de pessoas que se alistaram depois do 11 de setembro. Queriam fazer a sua parte e, dois anos depois, foram mandadas para o Iraque e pensaram: "Mas que porra estou fazendo aqui? Não foi para isso que me alistei".

Parece que o que você está dizendo é que o filme é menos unidimensional do que o discurso em torno dele e a crítica contra você, que é quase mais míope do que o filme em si.

Sim, exatamente. E aí a pergunta precisa ser feita: por quê? Como foi que eu me tornei... por que virei o bode expiatório? Quer dizer, eu li o que o Noam Chomsky escreveu sobre o assunto. Li Matt Taibbi, li Chris Hedges... li o que os pensadores da extrema-esquerda disseram, e são todos muito cruéis e ferozes contra o filme. E concordo com muito do que eles dizem, mas não vão atrás deles. E o motivo pelo qual foram atrás do Seth Rogen é porque temos uma grande penetração no mainstream do norte-americano médio. Meus fãs, e obviamente a igreja da esquerda, adoram meu trabalho, compram meus livros e assistem aos meus filmes, mas, se fossem só eles, eu estaria condenado. Meus filmes passam em alguns shoppings e cinemas comerciais. E isso é muito incomum para uma pessoa da esquerda – nosso trabalho, nossa arte –, alcançar a massa dos Estados Unidos. Então, isso me torna perigoso para eles, porque sabem que eu tenho esse público. Acho ótimo que, às vezes, receba comentários do tipo: "Como foi que ele conseguiu dois milhões de seguidores no Twitter? Alguém pode me explicar? Em que mundo vivemos?".

Não tenho um programa diário na TV como a Rachel [Maddow], não tenho um programa semanal como o Bill [Maher]. Meu último filme foi feito há cinco anos e meu último livro, há uns dois. Não estou na mídia todo dia. Não apareço na TV. E, mesmo assim, tenho um número de fãs enorme que vai muito além da igreja da esquerda – e,obviamente, Seth Rogen também, até mais, porque ele não é uma pessoa política. Ele está muito, muito no mainstream, principalmente com a geração mais nova. E isso o torna perigoso, e eles precisam detê-lo imediatamente. Ele não pensou em nada muito político, achei que foi uma observação muito astuta e engraçada que ele fez. Mas agora tem um restaurante em Michigan onde Seth Rogen e eu não podemos comer. Criei a hashtag #tableforsethandmike ("mesa para Seth e Mike") para qualquer restaurante que aceitar nos servir, por favor, mandar o nome para nós. [risos]

Obviamente, você viu o cartaz que a Sarah Palin levantou: "Michael Moore", com miras nos dois Os.

Aquele que acabou com a carreira política dela no sábado?

É.

É, eu postei aqueles dois tuítes no domingo. E, na segunda-feira, percebi que era melhor fazer um post no Facebook, porque moro em uma nação onde muita gente não consegue compreender. Fora que 140 caracteres não é muita coisa. Então, fiz [um post] no Facebook e decidi que não ia mais falar nada até sexta-feira. Não postei nada no Twitter sobre o assunto, não falei nada, não fiz nada: simplesmente decidi deixar esses malucos cansarem e gritarem a semana toda. Não vão me ver contra-atacando, o que vai aumentar ainda mais a gritaria e maluquice, e essencialmente deixá-los socarem a própria cara. Era isso que eu esperava que fosse acontecer. Pensa: a grande maioria dos seguidores dela são evangélicos. Gente cristã de bem. Eles ficaram chocados ao vê-la segurando um cartaz escrito "Vai se foder".

Essa é uma pessoa que se coloca como uma respeitável mãe americana.

É. Valores da família. Muito exemplar, e ela fala coisas do tipo: "Valei-me, minha nossa senhora". Ela ficou tão irritada comigo que abaixou a guarda e mostrou quem é de verdade, e a direita cristã viu e ficou horrorizada. A repercussão negativa nas redes sociais foi imediata e também se repetiu no sábado antes do discurso dela. Minha teoria é que ela achou que seu próprio povo se voltou contra ela, e isso deixou-a aturdida. E aí acho que o teleprompter pifou, né? Ela não conseguiu [se] recuperar, e estava bem no meio. Preciso ver de novo, não lembro. Vi na C-Span. Mas, no começo, ela estava me criticando, estava sendo muito criticada pelo próprio povo, e aí começou [a ir] para cima de mim, e o teleprompter cai. Então, enfim. Gosto de imaginar que foi um bom ou uma boa sindicalista...

Que desligou o aparelho?

[risos] Que desligou o aparelho. Mas, seja como for, ela ficou atordoada. Se você acompanha as notícias sobre ela agora, nos últimos quatro dias, só se fala que ela acabou. Estão atacando-a na Fox: Bill Kristol, que era um grande apoiador dela. Todas essas pessoas a abandonaram por causa dessas duas coisas que ela disse: segurar um cartaz usando a palavra "foder" e o atordoamento dela quando ela foi me atacar, e se perder e não conseguir mais falar.

Com as miras e os Os, ela já não tinha tido problema? O site dela alguns anos atrás não tinha miras em alguns distritos no país?

Sim, e ela teve de tirar. E, no cartaz do "Vai se foder", ela colocou miras nos dois Os do meu nome. E isso também teve repercussão negativa, obrigado por me lembrar. Então, foi por usar o palavrão e voltar a colocar a mira em um ser humano.

De qualquer forma, estou olhando a foto agora e ela está fazendo um sinal com a mão que é bem "trasheira". Sabe quando você levanta o dedinho e o dedão? Não sei nem como chama. Tem um nome.

É, sei do que você está falando.

É tipo um sinal meio festeiro. É bem engraçado.

[risos] É mais tipo: "Vamos matar esse filho da puta e fazer FESTA!".

Tem uma coisa que é muito zoada e grosseira no que ela está fazendo com as mãos. Preciso te fazer uma última pergunta, porque não posso terminar uma entrevista falando sobre a Sarah Palin. Você permite que pessoas que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático usem seus cinemas como espaços de reunião. Como você acha que o filme lidou com a questão do transtorno, já que o assunto é tão próximo de você?

Bom, eu me identifico com ele através dos veteranos que ajudo, mas também me identifico pessoalmente. Não tive de passar pelo que eles passaram no Iraque, mas tive de lidar com as ameaças que sofri depois do meu discurso no Oscar; e, depois de Fahrenheit, houve meia dúzia de agressões contra mim. Tive de contratar segurança, essencialmente seis ex-Seals da Marinha e Boinas Verdes, e eles pegaram um cara que fez uma bomba de fertilizante para explodir a minha casa. Então, também tive problemas nesse sentido.

Fiquei feliz [pelo transtorno] estar no filme. Sabe, o Clint não tentou retratar nem os soldados nem os veteranos como uma operação monolítica de He-Man. Eram todos gentis. E acho que são. Sei que isso desencadeou coisas boas para pessoas que querem lidar com o problema do trauma e acho que o filme vai gerar uma vontade de ajudar os veteranos que retornam. Espero que promova coisas boas em níveis emocionais. Mas, no nível cognitivo, os americanos que assistem a esse filme precisam se comprometer a nunca mais: nunca mais vamos permitir que uma situação como essa se repita.

E se presta pouquíssima atenção a isso... o grande funeral que fazem no final com a caravana parece uma coisa que se faz para alguém que morreu na guerra. A guerra em que ele morreu foi a guerra em casa – a guerra do veterano que retorna, mas não recebe ajuda. Mas também é a guerra de uma cultura americana, especificamente a cultura texana, que diz: "Claro, dá uma arma para todo mundo. Vamos para o campo de tiro. Ah, ele tem transtorno de estresse pós-traumático? Não tem problema, toma uma arma". A arma americana, a cultura e a atitude americana com relação às armas mataram Chris Kyle. E isso é tratado de forma muito breve no filme. Só sabemos como ele morreu. O Clint não mostra a cena em que ele pega a arma e eles vão ao campo de tiro, e [não] mostra a cena no campo de tiro e [não] mostra que, depois de tudo que ele passou no Iraque, ele é morto desse jeito por um colega do exército. Não foi um liberal, nem um manifestante, mas um deles. A coisa toda é um erro, a guerra toda era um erro. Era imoral, era ilegal. O Papa disse que não é uma guerra justa, e é completamente... olhe as estatísticas dos caras que voltaram em termos de violência doméstica.

Abuso de remédios controlados...

Nossa. É muito... e tenho a impressão de que as pessoas acham que o que os olhos não veem, o coração não sente. "Não quero pensar nisso". Mas se o filme faz pensar sobre isso, terá feito uma coisa positiva; mas se saírem do filme pensando "Ansioso para a próxima guerra, para a gente pegar mais desses criminosos"...bom, desculpa, pessoal, mas não vamos aprender a lição até estarmos dispostos a dizer: "Nós fomos os criminosos, nós fomos os caras que erraram aqui". As pessoas estavam defendendo suas casas, e é por isso que estavam matando a gente. Assim como a gente os mataria! Se um grupo de iranianos ou iraquianos ou canadenses aparecesse na rua principal da sua cidade, me diz se você faria diferente.

É mais complicado que isso, porque eles não só estavam matando soldados americanos, mas estavam também se matando entre si. E, sinceramente, de certa forma, talvez seja perfeito que esse filme tenha sido lançado agora em um momento em que o ISIS trouxe a guerra do Iraque de volta para a consciência das pessoas e expôs a complexidade de lá que ninguém sabia que existia quando fomos ao Iraque, porque não se prestou atenção nem se aprendeu com isso. É interessante o filme sair agora, quando tudo está voltando a aparecer, porque nós que despedaçamos essa coisa. A confusão é agora e ainda está por vir.

Despedaçamos mesmo. Não digo que o Saddam Hussein fosse um cara do bem, mas ele claramente entendia que a única forma do Iraque não se desintegrar era ser um país laico, não religioso. Se a religião fosse introduzida, haveria uma guerra civil. E ele estava certo. É isso que está acontecendo agora.

Será que passaríamos um filme que se referisse constantemente aos indígenas americanos como selvagens?

Preciso dizer, antes de encerrarmos, que o retrato dos iraquianos, árabes e muçulmanos nesse filme é muito ofensivo. Estamos discutindo isso aqui na nossa casa, em Michigan. Existem muitos povos indígenas aqui. E será que passaríamos um filme que se referisse constantemente aos indígenas americanos como selvagens? O termo é falado muitas vezes nesse filme. A primeira vez que ouvi, pensei: "Tá, entendi, os soldados falam assim". Mas aí continuou se repetindo, e aí ouvi o Clint Eastwood falando, não os soldados. Ele precisava muito afirmar essa ideia. Ele precisava afirmar, do ponto de vista da história, que os outros lados eram selvagens, que eles enfiariam uma furadeira na cabeça de um menino. Isso ele precisava muito.

A primeira coisa que escrevi sobre a confusão que ele faz entre Vietnã e Iraque foi que a coisa toda de mandar crianças ou mulheres com granadas, ou enfim, isso faz parte da mitologia do Vietnã. E aconteceu de fato no Vietnã algumas vezes, mas isso assustava todo mundo, fazia todo mundo achar que os vietnamitas eram animais. Bom, isso não aconteceu na guerra do Iraque. As crianças não eram pegas em armadilhas, não levavam granadas e essas coisas todas. Na Palestina, tinha mulheres que faziam atentados suicidas: teve a mulher que tentou um ataque suicida na Jordânia, mas estão tentando negociar a libertação agora. Mas isso não foi na guerra do Iraque. Não teve esse tipo de coisa.

Perdemos muitas pessoas e muitos membros por causa de celulares e bombas caseiras que plantavam na estrada e explodiam. E aí o Rumsfeld se recusou a trocar os veículos da General Motors; então, nos primeiros anos, o chão dos veículos era praticamente papel alumínio. O pessoal lá começou a adaptar: pegavam sucata e parafusavam na porra toda para poder viver, porque o Pentágono não queria dar veículos nos quais eles pudessem sobreviver. Então, é ofensivo ouvir essa palavra dita em todo o filme por... não por pessoas ruins, mas pessoas boas, o que faz parecer que tudo bem dizer essas palavras sobre os iraquianos "selvagens".

Isso também reforça um sentimento sobre os árabes e muçulmanos que me deixa desconfortável. Mas – sabe? – não estou dizendo para tentar esconder isso. Existem problemas sérios. Até o cara com a bomba de fertilizante, posso citar um exemplo em dez anos contra mim. Se eu morasse em outros países, seria um pouco mais frequente. Então, não quero comparar isso àquilo, mas postei uma coisa no Facebook , porque me pediram nos últimos dias, com o Clint Eastwood. Se ele me ameaçou de morte? O Snopes finalmente fez uma matéria sobre isso ontem e disse que sim: é verdade, aconteceu em 2005 no restaurante Tavern on the Green. Acho que todo mundo levou como piada ou meio piada, mas foi uma dessas situações esquisitas em que ele não esperava uma risada, e aí as pessoas riram, e ele não gostou e disse: "Aí, estou falando sério. Te meto bala". E aí ficou um silêncio, do tipo: "Qual é o problema dele, porra?". Não se brinca com certas coisas. Não se fala para uma mulher "Aí, vou te estuprar" e, depois de uma risada nervosa, "Não, estou falando sério! Vou te estuprar!". Não diga isso, por favor. Não é legal.

Vamos encerrar aqui. Uma última coisa: nenhum filme consegue contar toda a história. Com certeza, existem muitas histórias iraquianas que não estão sendo contadas nesse filme. Mas a última cena, em que o Chris vai até a porta e sabemos o que vai acontecer: e a história não contada desse assassino? Será que devemos saber sobre eles? Tem alguém contando essa história do veterano iraquiano que volta para casa destruído psicologicamente?

Não, não está sendo contada. Ninguém pensa nisso no dia a dia. As pessoas não querem pensar na seriedade que esse problema pode ter. Vamos pagar o preço por isso se não tratarmos do assunto. Já estamos pagando. É um grande problema e deveria ser prioridade máxima.

Onde as pessoas podem buscar saber mais? Você quer indicar algum lugar?

As linhas de apoio aos veteranos que foram criadas por grupos de veteranos. Tem um documentário em curta-metragem, que foi indicado ao Oscar neste ano, chamado Crisis Hotline: Veterans Press 1 ("Linha Direta da Crise: Veterano, Digite 1", em tradução livre). É muito forte. É baseado em uma linha direta de veteranos que funciona perto daqui. Então, acho que tudo que você puder fazer para apoiar e incentivar, localmente, psicólogos e psiquiatras a doarem o tempo que tiverem. Não dependa do governo para isso. E também tem grupos muito bons, como os Veteranos Americanos do Iraque e do Afeganistão, e outros que estão tentando ser bons defensores dos veteranos. E acho que as pessoas devem entrar para esse grupo. Devem apoiá-lo, e também acho que devemos forçar nossos representantes a fazerem disso uma prioridade. Nosso sistema de saúde tem um problema, porque não tratamos de saúde mental da mesma forma. Devemos nos preocupar igualmente com a saúde mental e física.

Quantos veteranos cometem suicídio por dia?

São 22 por dia.

Isso é assustador.

A porcentagem de veteranos em situação de rua é assustadora. Se fosse possível mostrar para jovens no ensino médio: "É assim que o seu país te agradece pelo seu serviço". Escrevi um blog no ano passado dizendo que quero que todo mundo pare de dizer para os soldados e veteranos: "Obrigado por servir o nosso país". Eles não querem ouvir isso: querem que você cale a porra da boca e faça alguma coisa. Garanta tratamento de saúde mental. Vote em políticos que não vão os mandar para a guerra por motivo nenhum. Sabe? Se quer agradecer, é assim que pode fazer.

Tradução: Aline Scátola

por Eddy Moretti


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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Adolfo Sá, uma entrevista ...

Fanzines - de Fan(atic) + magazine(revista, em inglês) – são publicações amadoras, geralmente produzidas de forma artesanal e sem fins lucrativos, por (e para) fãs de determinado segmento cultural. Circulam, principalmente, entres os aficcionados por ficção cientìfica, Histórias em quadrinhos e pelo mundo do rock “underground”. A cultura punk, que explodiu na Inglaterra no final da década de 1970, foi a principal responsável por sua disseminação mundo afora, através do lema “Do It yourself”, ou “faça você mesmo”.

Havia uma cena forte de fanzines em Aracaju entre as décadas de 80 e 90 do século passado. Do “Centauro sem cabeça” e “Seduções ecológicas”, que circulavam nos meios universitários, ao “Clube do ódio” e “Buracaju”, nascidos nos porões “roqueiros” da cidade. A eles se juntaram, posteriormente, nomes como “Escarro Napalm” (deste que vos escreve) e o “Cabrunco”, editado por Rafael Jr., baterista da banda Snooze, e por Adolfo Sá – na época, um ilustre desconhecido ...

O “Cabrunco” chegou “chegando”, com uma proposta mais profissional e bem acabada, com editoração eletrônica e com cara de revista, e acabou se destacando não somente no cenário local, como por todo o país. Repercutiu, inclusive, na grande mídia, o que fez com que Adolfo passasse a circular pelos principais circuitos de festivais independentes Brasil afora, sempre emprestando sua verve ao mesmo tempo “bruta” – porque brutalmente sincera e direta – e inteligente à narração do que via acontecer por aí – e por aqui.

Marcou época, mas um dia acabou, porque nada, afinal, dura para sempre. Adolfo, no entanto, manteve o espírito e migrou para internet, onde criou um blog, o Viva La Brasa, que segue mais ou menos a mesma linha: jornalismo “gonzo”, 100% independente, sem o rabo preso e feito direto das ruas, com enfoque no cenário cultural “alternativo” mas se aventurando por temas dos mais variados – do surf, uma de suas paixões, à política, sua principal aflição.

Agora um apanhado de toda essa produção está disponível num formato mais nobre, para ser lido e guardado com todo o carinho nas estantes dos mais “antenados”: acabou de sair “Viva La Brasa”, o livro! Uma produção, como não poderia deixar de ser, totalmente independente, bancada pelo autor na cara e na coragem. Um verdadeiro marco no cenário editorial local, pois serve como registro impresso, para as atuais e futuras gerações – mesmo que no futuro não exista mais energia elétrica! – do trabalho desenvolvido não apenas por Adolfo, mas por todo um grupo de pessoas que atuam informalmente, como ele, longe dos holofotes e dos esquemas viciados da grande mídia comercial e dos apadrinhamentos políticos que engessam nossa produção cultural.

CHEGOU!
O livro foi lançado com grande sucesso numa festa concorridíssima na Caverna do Jimmy Lennon, no centro da cidade, com direito a exposição de ilustrações de Thiago Neumman, apresentações de “pole dance” e de alguns dos nomes mais importantes do cenário musical local: Plástico Lunar, Mamutes, Ferdinando Blues Trio, Karne Krua e The Renegades of punk. A correria foi grande, eu sei, mas resolvemos não dar descanso ao “Homem Brasa” e o intimamos para uma entrevista. O resultado segue abaixo – ainda incandescente ...

# De onde você veio, Adolfo? Conte-nos um pouco de sua infância, do que você lembra de mais marcante e pode ter te influenciado ...

ADOLFO SÁ: Nasci em Salvador em 1975 e morei lá até 88. Minha infância foi normal, fui campeão mirim de judô mas larguei quando quebrei o braço e comecei a pegar onda. Eu e meus amigos costumávamos pular o muro da escola pra curtir o dia lá fora. A rua sempre foi mais atraente do que a academia. Em 86 comecei a surfar e no ano seguinte entrei de cabeça no rock, ouvindo discos e fitas do Camisa de Vênus e Titãs. O álbum "Cabeça Dinossauro" me fisgou, e o Camisa era uma lenda por lá. As revistas Geraldão e Chiclete com Banana também fazem parte da formação nessa época.

# Qual era sua relação com Aracaju? E como você começou a desenvolver essa vocação para o jornalismo? Foi um processo perceptível, em sua cabeça, ou simplesmente “aconteceu”?

ADOLFO SÁ: Desde criança passava as férias de verão em Aracaju, na casa dos meus tios no conjunto Dom Pedro I. Eu e meus primos fazíamos o que todo moleque faz: jogar bola de gude e empinar pipa. Nunca gostei de futebol, nunca gostei de correr nem de ficar debaixo do sol. Em 89 meu pai tava falido e mudou pra cá tentando melhorar a vida; foi o começo de um inferno pessoal pra minha família, porque o coroa despirocou e dá trabalho até hoje. Entrei no Colégio de Aplicação aos 14 e tive que me virar sozinho desde então, até os livros pra estudar eu tinha que arrumar por conta própria. Eu competia em eventos de surf, mas dos 15 aos 17 passei por 3 cirurgias no joelho, o que me fez abandonar a ilusão de ser surfista profissional (risos). Mas eu perdia mais do que ganhava, nunca fui competitivo, nunca quis ser melhor do que ninguém. Na escola, me juntei aos piores alunos porque eram os caras mais espertos e divertidos, mesmo assim volta e meia tirava 10 em redação. No vestibular, sabia que não teria a opção de fazer faculdade particular e não via nenhuma profissão que me empolgasse. Pensei em fazer pra Artes, mas na UFS só rolava de se formar professor e eu nunca quis dar aula. Não gosto de falar muito.

# Seu envolvimento com os fanzines e com o meio alternativo, em geral – como você travou contato, primordialmente? O que o levou a começar um fanzine? Você já pensava, na época, em se profissionalizar, virar um jornalista “de fato”, formado, com diploma? Aliás, você vive de jornalismo?

ADOLFO SÁ: Não vivo de jornalismo. Escolhi o curso mais por falta de opção do que por qualquer outra coisa. Trabalho há 12 anos com audiovisual, editando e dirigindo. É daí que tiro o meu sustento. Comecei fazendo zines por puro instinto, nem sabia o que era isso direito, mas comecei a ser publicado num jornalzinho chamado Zona Sul, não gostava do layout nem do perfil da parada e decidi começar a fazer meu próprio jornalzinho. Atitude sempre tive, o que falta às vezes é grana e incentivo.

# O “Cabrunco”, seu primeiro fanzine, era um projeto pessoal ou coletivo? Lembro que ele foi um dos primeiros, senão O primeiro, na cidade, a usar a editoração eletrônica na confecção – antes era tudo sempre na base da colagem, do improviso autodidata, mesmo. Havia custos com isso, e com a impressão? Em caso afirmativo, havia retorno do investimento financeiro?

ADOLFO SÁ: Meus projetos sempre foram coletivos, nunca tive a arrogância de fazer algo sozinho, apesar de sempre ter corrido atrás dos meus objetivos por conta própria. Rafael Jr., que fazia o zine junto comigo, já era meu amigo das gigs e do surf. Chamei ele, sugeri o nome "Cabrunco" e o resto é história. Sempre tirei grana do bolso pra tocar meus projetos, nunca esperei pelo sistema e jamais tive retorno financeiro. Pelo menos vou morrer realizado sabendo que fiz tudo na medida do impossível.

# Qual era a tiragem, em média, do Cabrunco, e onde e de que forma ele era distribuído? Como se deu o diálogo e a inserção de vocês dentro da cena, que já existia, com bandas e fanzines pioneiros como o Buracaju e a Karne Krua, na ativa desde a década de 80? Foram bem recebidos, de cara, ou houve uma certa desconfiança inicial?

ADOLFO SÁ: A tiragem foi aumentando ao longo do tempo, o zine era distribuído pelo correio. Nos últimos números já rolavam 1000 cópias por edição, sempre independente. Como eu era um moleque, muita gente não botava fé, você mesmo foi um dos mais duros críticos no início e me fez evoluir por causa disso. A real é que a gente tinha a vontade de fazer, mas ainda tava se desenvolvendo e descobrindo o mundo. Sem tantas referências nem facilidades como hoje em dia, onde a internet entrega tudo de mão beijada pra molecada.

# O jornalismo é, pelo menos quando exercido de forma independente, sem o rabo preso com nada, realmente uma atividade de risco? Você já sentiu isso na pele? Já sofreu represálias por conta do escreveu? Lembro de pelo menos um caso de embate físico entre você e um membro de uma banda que não havia gostado de uma critica negativa publicada no fanzine ...

ADOLFO SÁ: Total. Já tive que sair na mão com um otário. As pessoas não gostam de quem fala a verdade, e o esquema em Aracaju é um lamber o rabo do outro. Mas sempre fui verdadeiro comigo mesmo, foda-se o que os outros vão pensar.


# O “Cabrunco” acabou se tornando um marco na cena local, com substancial projeção nacional. Quais foram os momentos mais marcantes, pra você, na trajetória do fanzine? E o que isto te proporcionou, em termos pessoais, sentimentais ou mesmo financeiros?

ADOLFO SÁ: Pra começar, o CABRUNCO tinha um nome que até então era um palavrão no dialeto local, ninguém jamais havia usado pra batizar nada. Por causa dele, conheci o Brasil indo pra festivais, morei durante semanas ou meses em outras cidades, o que não seria possível pra um jovem pobre como eu numa outra circunstância. Fiz amigos pra vida toda, um deles é você. E também arrumei umas namoradas em outros estados, essa foi a melhor parte. Fácil.

# Porque o Cabrunco acabou?

ADOLFO SÁ: Porque, quando você tá fazendo algo, o que não falta é gente pra te criticar, policiar e botar pra baixo. Depois que passa, todo mundo fica falando "ah, como era legal", "saudade" etc.

# Finado o “Cabrunco” você deu uma sumida, o que aconteceu neste hiato em que você, pelo menos aparentemente, ficou de fora da atividade “jornalística”?

ADOLFO SÁ: Eu nunca sumi, quem sumiu foram os amigos. A velha fuleiragem de Aracaju, gente interesseira etc. No mesmo ano que acabei com o Cabrunco, formei uma produtora com uns chapas, a Marginal, que promovia festas no Cultart e fez o 1º festival nacional de rock do estado, o Rock-SE. Trouxemos um monte de bandas do país todo, incluindo os standards Marcelo D2 e O Rappa, mas tivemos um prejuízo monstro e eu saí com uma mão na frente e outra atrás. Mais uma vez, nenhum amigo ofereceu ajuda na hora difícil e eu tive que me virar sozinho pra sobreviver. Entre um bico fodido e outro, me formei em jornalismo. Apesar da minha experiência com autopublicação e colaboração em revistas como Rock Press e Música Brasileira, nenhum jornal local me ofereceu emprego, sequer um estágio. Filhos da puta.

# Como se deu a “retomada”, se é que podemos chamar assim? Via blog? Porque essa opção?

ADOLFO SÁ: Em 2003, arrumei estágio numa produtora e em 2 meses me tornei editor de vídeo. No início de 2004 rolou um passaralho, geral foi demitida, e com a grana do seguro-desemprego me joguei pro Rio de Janeiro, onde morei na casa de Allan Sieber e aprendi um monte de coisa na Toscographics. Quando retornei a Aracaju, tava na pilha de voltar a produzir minhas coisas e criei o blog VIVA LA BRASA, utilizando a tecnologia mais barata disponível. Aí as pessoas começaram a lembrar que eu existo.

# E o blog, o que te proporcionou, em termos de satisfação pessoal, especificamente? Trace um paralelo das diferenças entre as duas épocas que você viveu, a dos fanzines, nos anos 1990, e a virtual/digital, no século XXI.

ADOLFO SÁ: As respostas estão no livro, é só folhear e ler pra entender.

# O blog parou para que você pudesse se dedicar à confecção do livro? Vai voltar?

ADOLFO SÁ: O blog já está de volta, parei porque dirigi a TV pública de Sergipe durante 2 anos e não tinha tempo pra porra nenhuma. Meu ex-patrão era um vampiro, que se foda aquele maldito. Dei um tempo nas postagens, selecionei as melhores e reuni uma equipe pra fazer o livro.

# Como foi e quanto tempo durou o processo de concepção do livro? Ficou satisfeito com o resultado final?

ADOLFO SÁ: Dois anos de muito trabalho e dor de cabeça, com um editor preguiçoso que eu mandei SE FUDER. Não fiquei 100% satisfeito porque tive que acumular funções que seriam de outros, como a revisão por exemplo, e há vários pequenos erros que poderiam ter sido evitados.

# Quais suas expectativas quanto à recepção do mesmo, agora que está nas ruas? Há alguma estratégia de distribuição?

ADOLFO SÁ: Expectativa nenhuma. Vendi 25 cópias na pré-venda e 10 na noite de lançamento - que por sinal foi um sucesso de público, com altas bandas e até pole dance. A maior parte dos exemplares vendidos até agora foram pra fora do estado, pra variar né. Só de custo de impressão foram R$ 8 mil, mais R$ 5 mil com a equipe. Jamais recuperarei essa grana. Como disse um amigo, "a galera aqui é miserável".

# Valeu/vale a pena?

ADOLFO SÁ: Vale a pena, sempre. O que importa é a satisfação pessoal. Fodam-se os cuzões.

publicado originalmente no jornal FOLHA DA PRAIA

por Adelvan “Kenobi”

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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

NEM TODOS ESQUECEM

Always Look on the Bright Side of Life
“A vida de Brian”, clássica comédia cinematográfica do grupo de humor inglês Monty Python, acompanha as desventuras de um pobre coitado cuja vida é infernizada por ter nascido na manjedoura ao lado da do menino Jesus e ter sido, por isso, confundido com o messias. Numa das cenas mais antológicas do filme ele perde uma sandália ao fugir, pela enésima vez, de uma turba de seguidores fanáticos, o que causa um cisma na “religião”: parte acha que aquilo foi um sinal e começa a se auto-denominar de “facção dos seguidores da sandália”, parte prefere seguir “puro” na doutrina e continuar a perseguição. Lembrei disso ao saber que não existe nenhum trecho do alcorão em que seja explicitamente clara a proibição da representação do profeta em imagens. Fica tudo por conta da interpretação de cada um, com as devidas variações, de acordo com as tradições – há, inclusive, os que proíbem a representação de qualquer ser vivo! Ou seja: tanto barulho - e morte!!! - por, praticamente, nada!

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por Gessy Kelly
“Clandestino” é um projeto itinerante no qual uma juventude que vive à margem do calendário cultural “oficial” e/ou “comercial” ousa tomar o espaço público e produzir, de forma absolutamente independente e alternativa, sua própria música. Divulgam a data e o local das apresentações via facebook e geralmente aproveitam a passagem pela cidade de alguma turnê “subterrânea” de grupos amigos ou com os quais tenham alguma afinidade. É capitaneado pelo pessoal da “The Renegades of punk” e contou em sua décima edição, ocorrida no última dia 11 de janeiro, um domingo, com apresentações, além dos anfitriões, da Karne Krua, veterana banda punk Hard Core local – completando 30 anos de atividades ininterruptas! – e da NTE (Nem Todos Esquecem), do Rio Grande do Norte.

por Gessy Kelly
Os potiguares surpreenderam positivamente com um show visceral onde se destacou a presença de palco de seu vocalista que, não por acaso, se apresenta sob a alcunha de “Falante”. Ele falou, muito, e com uma convicção assombrosa, que se via estampada em sua face. Algo raro de se ver nos dias de hoje, dominados pelo cinismo e pela apatia. Falou e pintou e bordou, numa perfomance impressionante – e espontânea, o que é muito importante. Tudo o que é dito nas letras das músicas é interpretado com gestos teatrais – reverenciar uma bicicleta, por exemplo – e expressões faciais que dão uma nova dimensão ao som da banda, um punk rock bastante básico, simplório, até. O que não é, em absoluto, um demérito: menos é mais, já ensinaram os Ramones em pleno auge dos excessos do rock progressivo. O punk rock não morreu, nem morrerá, enquanto existirem bandas com esse tipo de atitude – percorrer cerca de 800 km para tocar na praça, na raça, não é pra qualquer um! E, de quebra, na passagem pela Paraíba ainda trouxeram a tira-colo a dupla dinâmica Adriano e Olga, responsável pelo programa de rádio Jardim Elétrico e pelo jornal/sêlo Microfonia. Grandes figuras ,,,

por Gessy Kelly
Em tempo: “presença de palco” é força de expressão, já que não há palco no clandestino. É tudo feito no mesmo nível, em perfeita simbiose com o publico – que compareceu em bom numero, especialmente para um domingo. E foi bastante participativo, principalmente durante a apresentação da Karne Krua. Que foi, como sempre, sensacional, transbordando energia e, acima de tudo, VERDADE. Muito bom ver gerações de “rockers” permanecerem unidas em torno do bom e velho lema do “faça você mesmo” - e na rua, ao ar livre. Vida real! Sem porta, sem muros e com a presença de várias crianças. E de cachorros.

Tudo isso aconteceu há mais de um mês, o que desencoraja a publicação. Resenhas tão tardias, nestes tempos de velocidade supersônica e informação instantânea, correm o sério risco de parecerem textos datados discorrendo sobre assuntos agora irrelevantes, porque “já passou” e a grande maioria já esqueceu – e pior, ninguém tem mais interesse em lembrar.

FODA-SE! NEM TODOS ESQUECEM!

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Mais tempo ainda tem a última Festa da Antevéspera, que aconteceu no apagar das luzes do ano passado. Trata-se de um evento criado por fãs “auto-exilados” – leia-se “que moram fora” - da banda Snooze com o intuito de aproveitar a presença da maioria deles na cidade para as festas de fim de ano e promover um encontro para matar a saudade. Esta última edição contou com as participações especiais de Arthur Matos, Dani “renegades” – fazendo uma apresentação recheada de clássicos alternativos acompanhada pelos “snoozers” – Julio, da The Baggios, e Patrícia Polayne, que acabou de vez com qualquer dúvida que porventura existisse de que ela é uma grande cantora ao interpretar a belíssima “Ivo”, do Cocteau Twins. Inesquecível!

Muito bom, também, ter assistido à volta do rock ao palco do Cultart, espaço cultural mantido no centro de Aracaju pela Universidade Federal de Sergipe que já abrigou noites insanas e antológicas, como os show da Mundo Livre S/A, do No Rest e do Jason – com direito a tiros de bacamarteiros! – além, é claro, da inesquecível Boate do porão. Tinha esperança de que tivesse sido uma volta “pra ficar”, mas a julgar pelo estresse que rolou no final da noite, com a apresentação da snooze tendo que ser encurtada por conta das restrições de horário, não vai rolar ...

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Vale o registro, também, de mais uma passagem do grande bardo “punk brega” Wander Wildner pela terra dos cajueiros e dos papagaios(sqn). Foi de surpresa, aproveitando uma visita dele à cidade acompanhando a namorada, cuja irmã mora aqui. Foi acompanhado por uma excelente banda formada por músicos locais que, ao final, nos brindaram com uma sensacional sessão de covers de rocks clássicos, tipo Beatles, Bowie, Led Zeppelin, Deep Puble, Black Sabbath, The Jam e The Kinks.

O show de Wander foi muito bom, metade acústico, metade elétrico. Altos clássicos cantados a plenos pulmões pelos empolgadíssimos fãs locais. O local, também, ajudou – apesar de, por ser pequeno, ter deixado a mesma quantidade de gente que entrou do lado de fora. Foi na simpática Dogueria do Artista, no Inácio Barbosa.

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Richard Linklater é o cara! Versátil como poucos, vai da comédia mais “pop” – “Escola do rock”, que tava passando na tradicional Sessão da tarde da globo dia desses – ao mais rebuscado manifesto existencialista – “Waking life” – com uma desenvoltura admirável. Em “Boyhood” ele volta suas lentes para a vida, em si. A vida das pessoas simples, que não tem nenhum papel excepcionalmente importante nos destinos da humanidade. E nos ajuda a refletir sobre a mágica que é simplesmente viver – e conviver. A mágica de ser. Ser humano, ser nós mesmos. Ser o que somos. Ser importante na vida de alguém sem ao menos se dar conta disso. Ou se dar conta disso e estar constantemente à beira de um colapso por conta das pressões decorrentes ...

Magistrais interpretações de todo o elenco, ajudado pelos excelentes diálogos e por uma direção segura – o que é especialmente admirável quando nos damos conta que o cara levou mais de uma década, acompanhando a ação do tempo sobre os personagens, para filmar tudo! Difícil escolher um destaque, mas devo dizer que adorei a versão "mirim" da personagem Samantha, vivida pela filha do diretor, Lorelei Linklater. Divertida, espirituosa e IRRITANTE, como só as irmãs pequenas conseguem ser. Depois ela cresce e se transforma numa pessoa ... normal. Tudo aqui é "normal", mas se agiganta pelo olhar aguçado da lente do realizador. Tudo muito humano - demasiado humano ...

Vale notar, também, a ausência de maniqueísmo na narrativa: todos são mostrados com seus defeitos e suas virtudes, sem resquícios da vilania rasteira típica dos “blockbusters”. A cena emblemática, neste sentido, é a que mostra a visita do pai, com seus filhos, à casa dos novos sogros, típicos representantes do chamado “cinturão bíblico” da “américa profunda”, onde o livro sagrado convive em perfeita harmonia com as armas de fogo. Num dado momento, à beira de um lago, ele é questionado sobre uma possível conversão, em tom jocoso. “Eu estou ouvindo vocês”, diz a nova esposa, sentada à distância, em tom de galhofa. As diferenças são mostradas, portanto, de forma respeitosa, amorosa, e sem julgamentos – se há algum, fica por conta do olhar do expectador. Uma cena simples, mas tocante.  

Até a duração exagerada do filme serve pra nos lembrar de que a vida, às vezes, parece durar demais. Só nos damos conta do quanto ela é, na verdade, breve, quando nos deparamos com as situações pelas quais sabíamos que iríamos passar mas que parece que esperávamos que não chegassem nunca, como a que provoca uma crise de choro na mãe, interpretada por Patricia Arquete. Nessa hora ela diz a frase-chave para entender o longa: "eu esperava mais". A gente sempre espera mais ...

Não foi o meu caso, com relação ao filme. Achei perfeito.

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Esqueça a “bomba” que os irmãos Wachovsky (de Matrix!.) soltaram nos cinemas neste início de ano: a verdadeira redenção da “space opera” está nos quadrinhos! Acabou de ser lançada no Brasil, pela Devir, a sensacional série “Saga”, de Brian K. Vaughan (Ex- Machina e Y: the last man). É uma espécie de Romeu e Julieta intergaláctico, a história do amor impossível de um casal de espécies diferentes – e beligerantes – em meio a muito sexo, fantasia, violência e intrigas políticas.

Edição primorosa, em capa dura e papel couchê.

Imperdível!

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As bancas nos trouxeram recentemente, também, duas grandes e agradáveis surpresas: os relançamentos de dois verdadeiros clássicos dos quadrinhos, “Miracleman” e “A Tumba de Drácula”, via Panini. O primeiro é uma obra-prima do mestre Alan Moore que estava perdida num verdadeiro labirinto burocrático por conta de um gigantesco imbróglio com os direitos autorais. Já o segundo é uma pérola “pulp” que vale, especialmente, pelos desenhos de Gene Colan e pelo clima típico do terror cometido pela produtora Hammer durante a década de 1970, quando trouxe a figura do conde vampiro da Transilvãnia aos dias atuais. Pra mim é especialmente digno de comemoração, este lançamento, pois tenho uma ligação afetiva muito forte com estas histórias, que eu acompanhava antes mesmo de aprender a ler, fascinado com os desenhos e curiosíssimo pra saber o que estava escrito. São tramas um tanto quanto esdrúxulas e “rasteiras”, mas que resultam numa leitura, no mínimo, interessante – e divertida. Tá valendo.

Vivemos um grande momento em termos de lançamentos de quadrinhos no Brasil.

Que venha mais! O bolso reclama, mas a satisfação é garantida.

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Por conta da efeméride dos 50 anos do golpe militar resolvi tomar vergonha e começar a ler, finalmente, a monumental série "As Ilusões Armadas", de Elio Gaspari. Lançada originalmente em 2002 e relançada recentemente em edição revista e ampliada pela editora Intrínseca, é considerada por muitos a obra definitiva sobre o período - até o fim do governo Geiseil, no caso. Figueiredo, de acordo com sua própria vontade, foi relegado a um solene esquecimento. Trata-se de uma obra-prima absoluta, um primor de reportagem escrita de forma impecável que esmiúça em detalhes todas as tramas sórdidas que mergulharam o Brasil em mais de 20 anos de escuridão - um verdadeiro apagão ético e moral. Essencial, especialmente nos tempos que vivemos, onde o excesso de informação parece estar produzindo, como efeito colateral, a desinformação, com vivandeiras do retrocesso encontrando, surpreendentemente, eco para suas malcheirosas tentativas de revisionismo histórico ao vomitar asneiras do tipo "o golpe foi uma reação ao terrorismo de esquerda" - não foi! A luta armada surgiu como legítima defesa à brutalidade do regime. Ou a idéia de que os militares estavam empenhados, efetivamente, no combate à corrupção - não estavam! O foco era na repressão. A corrupção progrediu na mesma medida do "milagre econômico", com direito, inclusive, à existência de  verdadeiras gangues gestadas no seio das forças armadas e empenhadas na delinquencia pura e simples, para muito além do espectro ideológico.

Está tudo lá, nos quatro volumes - de cinco, o quinto nunca viu a luz do dia mas segue prometido, para este ano. Narrado de forma honesta e equilibrada, mas sem se furtar a emitir opiniões e juízos de valor – a reunião que aprovou o AI-5, por exemplo, é chamada de “Missa Negra”, e os combatentes da luta armada são chamados de “terroristas” – com isso não sei se concordo, certamente não da forma generalizada como é apresentada, mas a opção semântica, a meu ver, não compromete a narrativa, que segue honesta até o fim do segundo volume – onde parei, num magnífico capítulo inteiramente dedicado à luta no Araguaia.

Uma curiosidade: na primeira edição, a que tenho - e li - não é feita nenhuma menção à então ministra das minas e energia Dilma Roussef, cuja história nos porões da repressão só adquiriu notoriedade após seu lançamento como candidata à presidência da república. Somente na nova edição, revista e ampliada, ela está presente.



Essencial!

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Aproveitei uma promoção de passagens aéreas, dessas que pipocam inesperadamente na tela de nossos computadores via publicidade na net, para conferir, em São Paulo, as exposições de Salvador Dali, no Instituto Tomie Ohtake, e de Ron Mueck, na Pinacoteca. O primeiro dispensa apresentações, já que é um verdadeiro ícone pop. A mostra, a maior dedicada ao artista até o momento, no Brasil, contou com um conjunto de obras formado por 24 pinturas, 135 trabalhos entre desenhos e gravuras, 40 documentos, 15 fotografias e quatro filmes. De encher os olhos e atiçar os sentidos.

Mueck é um escultor australiano radicado na Inglaterra. Ele trabalha com imagens hiper-realistas feitas de fibra de vidro e silicone que, por suas dimensões desencontradas da realidade, causam uma sensação de estranheza, flertando com o surrealismo. A mostra – ao contrário da de Dali - segue em cartaz até o dia 22 de fevereiro. A partir das 5 da tarde, às quintas, a entrada é gratuita. Peguei uma fila relativamente grande no dia em que fui, mas nada desesperador. Vale muito a pena, também, uma visita adicional ao acervo da pinacoteca, repleto de esculturas e quadros antológicos, daqueles que você passou a vida inteira vendo ilustrando livros didáticos. Se chegar cedo, a dica é um passeio pelo Parque Jardim da Luz, nos arredores da estação. É repleto de esculturas, algumas assinadas por nomes ilustres, como Lasar Segall e Victor Brecheret.

Desnecessário dizer que há várias outras opções de diversão e entretenimento cultural na grande metrópole. Sugiro uma conferida na programação do Cinesesc, o mais charmoso da cidade - conta, inclusive, como um serviço de bar dentro da sala de projeção! Lá revi o clássico "O Franco Atirador", dentro de uma Mostra retrospectiva do diretor Michael Cimino. E vi também, gravado nas paredes do cinema, o nome de um amigo, o ilustre jornalista e poeta sergipano Amaral Cavalcante, como parte integrante do elenco de "Sargento Getulio", de Hermano Penna - trata-se de um painel que homenageia grandes nomes do cinema nacional. Fica na Rua Augusta, número 2.075.

Logo abaixo, na mesma rua - número 2.389- temos a Sensorial Discos, simpático e aconchegante espaço dividido entre cervejas especiais e discos de vinil. É de propriedade de um grande amigo dos tempos de "fanzinagem", Carlos Rodrigues Costa - que vem a ser, também, baixista da banda Continental Combo. Lá encontrei, por puro acaso, o baterista sergipano Thiago "Babalu" - ex-Karne Krua, Sem Freio na Lingua, Fluster, etc. Ele estava em êxtase pois havia sido convidado de surpresa, na noite anterior, para substituir uma verdadeira lenda viva do rock, Steve Shelley, no show do igualmente lendário Thurston Moore - ambos membros-fundadores do Sonic Youth. Show ao qual não fui por ter considerado o preço extorsivo - 180 reais por uma apresentação de cerca de uma hora, convenhamos, é um pouco demais. Teria ido, se soubesse que um amigo de longa data estaria presente, no palco. Mas ok, nem ele mesmo sabia. Pior: me disse que teria deixado meu nome na porta, caso soubesse que eu estava por lá. Hora de respirar fundo e mentalizar, para se conformar com o azar ...

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