segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Elite da Tropa 2

Em ‘Elite da Tropa 2’, livro de Luiz Eduardo Soares, Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, que dialoga com a sequencia do filme "Tropa de Elite", de José Padilha, o protagonista é um ex-inspetor-chefe de investigações da Draco (Delegacia de Repressão às Ações do Crime Organizado) que se vê preso a uma cadeira de rodas depois de um acidente. Casado com uma doutora em linguística e apaixonado por literatura, ele decide narrar experiências próprias que viveu com sua equipe, como também a de policiais do Bope (veja capítulo abaixo). “Discutimos umas oito ou nove versões até chegar a esse resultado”, destaca Luiz Eduardo.

Em 300 páginas, divididas em 15 capítulos, a obra da editora Nova Fronteira deixa transparecer a árdua — e por que não infindável — batalha que é tentar combater as milícias no Rio de Janeiro. Em vários momentos, o narrador faz reflexões sobre a realidade de sua profissão e a instabilidade psicológica que marca o dia a dia dos policiais. O ex-comandante do Bope e coautor da obra Rodrigo Pimentel traduz bem essa situação. “A Draco condena os milicianos, prende, mas o domínio deles persiste. O Cláudio (Ferraz, delegado titular) não se ilude em pensar que acabou com a milícia em Rio das Pedras. Se não tiver ocupação territorial permanente, aquilo vai continuar. Às vezes, a gente começa a pensar que está enxugando gelo”, desabafa.

Não bastasse ser atual no tema, o livro também é contemporâneo no formato. O narrador conduz a história usando o Twitter. Paulo Roberto Pires, que escreveu a orelha de ‘Elite da Tropa 2’, comenta: “O livro tem uma abordagem realista, feita de uma maneira muito inteligente”, valoriza.

O delegado Cláudio Ferraz, que tem experiência em prender milicianos, mas é um novato como escritor, não esconde a empolgação. “Como em uma investigação, a fase de discussão para encontrar o caminho que seguiríamos foi a mais angustiante. Quando decidi participar desse trabalho, além do prazer de criar uma obra, eu queria que isso servisse como um marco, um ambiente de discussão e até uma fonte de pesquisa para estudiosos. Queremos os holofotes para essa situação. E que isso venha acompanhado com a busca da solução do problema. Como resolver esse problema? Dando dignidade aos policiais”, resume Cláudio.

* * *

TRECHOS DO LIVRO ‘ELITE DA TROPA 2’

‘A MORTE DE TOMATE’

O morro da Aroeira, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, faz fronteira com São Tomé, outra favela importante na economia do tráfico e do fluxo de armas. O Bope fez dezenas de operações na área ao longo daquele ano. Em praticamente todas eu estava presente. Muitas vezes comandando a tropa. Vivi ali duas situações extremas, de sentidos muito diferentes e consequências opostas. Uma fez de mim um capitão vitorioso; a outra, um vilão. Para falar a verdade, talvez tenha acontecido o contrário. Pelo menos de um certo do ponto de vista — a paisagem vista da laje? —, a primeira história poderia ser lembrada com orgulho, mas um orgulho cheio de sangue. Na segunda, em que fiz o papel de vilão — segundo a perspectiva dos senhores do bem e do mal, deuses dos carimbos, donos da verdade —, na realidade eu era o herói. Houve também uma terceira aventura que não sei se devo contar. Vou pensar a respeito. Quando terminar de descrever as duas primeiras eu decido. Foi um caso delicado. Não gostaria de criar problema depois de tanto tempo, desfazendo o que me custou tanto fazer. De fato, se na primeira situação senti o gosto amargo do triunfo e, na segunda, o doce sabor da derrota, na terceira não sei até hoje de que lado estava o certo, de que lado estava o errado.

Subi devagarinho o plano inclinado na lateral de um largo platô para atingir a plataforma, de onde eu teria um amplo controle visual da favela. A posição me daria uma visão de 360 graus. Sargento Tenório veio comigo, carregando o fuzil G3-SG1, com a excelente luneta Leopoldi que aproximava seis vezes a imagem natural. O G3-SG1 acertava um alvo a 60 metros com precisão e se fixava em um bipé suficientemente firme. Tenório não era o sniper do grupo, mas era fiel, corajoso e disciplinado. Pau para toda obra.

Pisei nas pedras e nos galhos caídos com muito cuidado para não fazer barulho. Não tinha a menor ideia sobre onde estariam os traficantes. Éramos 16 homens. Os oito da segunda equipe mandei entrarem pelo morro de São Tomé. Eu e os sete da primeira equipe viemos diretamente para a Aroeira, margeando a via principal. Escolhi a frente de um beco e algumas lajes como pontos estratégicos. Distribuí meu grupo pelos pontos. Os movimentos foram conduzidos com muita atenção e cautela. Os traficantes da Tijuca já conheciam bastante bem as técnicas do Bope. Tinham aprendido que não vale a pena nos enfrentar. A única saída para eles era reconhecer sua inferioridade, evitar o confronto e reagir só na covardia, armando alguma cilada contra nós. Por isso eu sabia que não era inteligente confiar no silêncio e na calma aparente. Pelo contrário. A mansidão era sinal preocupante de que nossos inimigos estavam nos observando, à espera de algum tropeço. Qualquer erro podia ser fatal. Não há nada pior para um soldado em guerra do que a autoconfiança. Quer dizer, autoconfiança excessiva. Aquela que beira a soberba. Como garante a sabedoria popular: só morre afogado quem sabe nadar.
Cheguei ao plateau e me ajoelhei. Explorei o lugar, lentamente, caminhando abaixado, enquanto Tenório montava os pés do fuzil. O capim-limão crescido subia pela encosta e produzia uma espécie de barricada verde na margem dianteira da plataforma. Não era preciso ficar de joelhos, mas tampouco seria prudente adotar a postura normal. A vegetação não era tão alta assim. De todo modo, a noite estava escura. Seu manto negro nos protegia. Tenório, além de religioso, era metido a poeta. Dizia coisas desse tipo. Eu não me incomodava, desde que ele mantivesse os pés na terra e os olhos bem abertos.

Não precisei nem de um minuto para matar a charada. Fantástico. Isso sim era um presente dos céus. Bem debaixo do meu nariz, a uns cinquenta metros, sob uma amendoeira frondosa, quatro traficantes conversavam. Olhei pelo binóculo, mas não tive certeza se o Tomate estava entre eles. Tomate era o dono do morro. O chefe do tráfico. Meu alvo naquela incursão e em tantas anteriores, frustradas. Sem pensar duas vezes, deixei meu corpo deslizar de costas pelo declive que me separava dos vagabundos e sobre o qual se erguia o plateau.
Estanquei um metro e meio abaixo de Tenório, encarando o céu, deitado, o binóculo no peito. Em silêncio, elevei o binóculo à altura dos olhos e, movimentando uns trinta centímetros a cabeça para cima, estudei a cena. Lá estava Tomate. Não havia mais nenhuma dúvida. Conhecia aquela cara das fotos que o Bope recebia da P2 e da polícia civil. Não tinha erro. Abaixei a cabeça, voltei a apoiar o binóculo no peito e sussurrei, no meio da relva alta, para Tenório.

— O cara de short vermelho é o Tomate.
Dei um tempo ao sargento e inalei o cheiro do mato à minha volta. O capim cobria parcialmente meu corpo. Levantei de novo a cabeça apenas o suficiente para observar os movimentos do grupo. Deitei a cabeça e tentei relaxar — como se fosse possível relaxar a cinquenta metros do inimigo, protegido só pela noite e pelo leve cobertor vegetal. Não sei exatamente quantos minutos se passaram. O que eu sei é que nunca vou esquecer o que senti quando me dei conta de que o dia amanhecia. Amanhecia numa velocidade irreal. Era quase como se a natureza tivesse acendido a luz, subitamente, apertando o interruptor cósmico. Meu corpo soube antes de minha consciência. Talvez um segundo. Mas garanto que soube antes. Sei disso porque recebi uma carga extra de adrenalina, bombeada direto no estômago, e o conceito claridade, luz, dia, sei lá, o conceito que dava sentido ao fenômeno veio em seguida. Não seria exagero dizer que o conceito foi transportado até a consciência pelos jatos sucessivos de adrenalina que o metabolismo bombeava em ritmo frenético. Não estou fazendo diagnóstico médico. Descrevo impressões e sentimentos.
Com a luz vieram o perigo e a lucidez. O medo também — por que mentir?
— E aí, Tenório? Porra.
— O cara de short vermelho foi para o outro lado da amendoeira. Estou esperando ele voltar para o lado de cá.
Eu disse baixinho mais algum palavrão, mas duvido que meu subordinado tenha ouvido. Fui obrigado a redobrar os cuidados. Parei de me mexer e de alçar a cabeça. A claridade trouxe os bandidos para perto. Uma coisa são cinquenta metros no meio da madrugada escura. Outra, ao amanhecer.
Suspendi um pouco o pescoço e vi que o grupo olhava em nossa direção. Olhava fixamente. Em alerta. Teriam visto o fuzil, mesmo camuflado? Temi que meu corpo pudesse ser percebido na forma de mancha na relva.

Um instante depois os vagabundos começaram a atirar. O coração socava mais forte. Logo deduzi que não éramos nós os alvos. Ou eles nos teriam acertado. Atiravam para a área à nossa esquerda, de onde viemos. Felizmente, meus homens eram disciplinados e cumpriam ordens. E eram preparados tecnicamente. Sabiam que quem atira a esmo é traficante e polícia convencional. Só os despreparados atiram aleatoriamente. As consequências a gente conhece: vítimas inocentes, balas perdidas e baixa eficiência. Se minha tropa respondesse aos tiros, revelaria sua posição, que permanecia ignorada pelos criminosos. Era esse nosso trunfo. Se o grupo do Tomate não tinha identificado nossa presença, por que atirava? Muito simples: àquela hora, cinco da manhã, o movimento da favela em um dia normal já teria começado. A partir das cinco os trabalhadores descem para o trabalho. Acontece que, naquele dia, ninguém descia. Por quê? Por que a imobilidade? Claro que era artificial. Evidente que estava sendo provocada por algum fator externo à vida da comunidade. A conclusão era óbvia. Alguma coisa estranha estava ocorrendo no morro. Nós éramos essa coisa estranha.

A explicação para o ataque sem alvo dos traficantes me acalmou por alguns segundos, mas não era motivo para tranquilizar quem estava deitado de costas na terra na iminência de virar foco da mira de armas inimigas. Eles continuavam estranhando o silêncio, a imobilidade. Percebi com um leve alçar do pescoço que davam alguns passos cautelosos em nossa direção, os fuzis já nas mãos.
Eu não queria transmitir insegurança ao Tenório. Ele não era experiente. Não era um sniper. Tinha tudo para tremer.
Usei a voz mais calma disponível no meu repertório:
— Consegue ver?
Tenório apertava o olho direito na luneta.
— Achou?
Ele finalmente respondeu:
— Está no retículo.
Retículo é aquela cruzinha que focaliza o alvo e calcula para o sniper a trajetória do tiro. Se eu mandasse ele atirar e ele errasse, eu estaria liquidado. Não foi bem essa a palavra que me veio à mente. Na hora falei fodido. Ou melhor, pensei. O jeito era dividir com Tenório a decisão. Eu só daria a ordem se ele estivesse se sentindo seguro.
Perguntei se ele achava que poderia fazer o tiro.
— Positivo, capitão.
— De short vermelho?
— De short vermelho.
— Dá pra fazer?
— Positivo. Está bem no retículo.
— Então faz.
O bando dispersou no instante em que Tomate foi atingido. Cada um correu em uma direção. A surpresa e o choque, o eco do estampido no relevo sinuoso do morro, tudo isso misturado confundiu a bússola dos traficantes: fugindo, buscando abrigo, atiravam sem norte. A quantidade de sangue ao redor de Tomate formava um círculo cujo diâmetro não cessava de crescer. Não sei o que fiz para ficar de pé tão rápido. Quando dei por mim estava acelerado, descendo, a pistola apontada para o dono do morro, que ameaçava atirar mas não conseguia manter o equilíbrio nem fixar a mira. Desorientado, prestes a tombar, ferido de morte, sangrando feito um porco, Tomate movia o braço direito com o fuzil em todas as direções, os joelhos dobrados. Parecia uma dança bizarra. Antes que ele me acertasse ou atingisse alguém, disparei minha pistola e ele tombou. Entretanto, não morreu logo. A agonia se prolongou. Vivi anos em guerra e não me lembro de ter visto sangue jorrando feito petróleo daquele jeito. Ele era gordo e os jatos faziam barulho. Um chiado sinistro. Um balão desinflando. Não digo isso para fazer graça. Não é engraçado. Na verdade, é triste, repugnante, ruim relembrar. E foi horrível a cena quando eu estava lá, debaixo da amendoeira, ordenando a meus homens que avançassem.

Tomate era meu troféu. A missão era matá-lo. Dezenas de vezes muitos de nós tentamos em vão. O homem era o diabo. Mesmo assim, vitorioso, acompanhando sua passagem borbulhante e penosa para o inferno, eu não me sentia feliz nem gratificado. Os soldados comemoraram, meu superior me fez um elogio público, o Bope foi celebrado em prosa e verso por mais aquela conquista, mas eu me sentia oco. Vazio como a carcaça ressecada do dono do morro.
Um fato envenenou minha vaidade e o sentimento de realização. Quando parei diante de Tomate agonizante - enquanto contemplava a vida em fuga, o sangue revirando o corpo pelo avesso -, uma criança de cima de uma laje próxima gritou. Não gosto de recordar o grito e a voz da criança, mas a memória tem autonomia e goza do direito de ir e vir. O que fazer? Ela gritava "meu pai" e me chamava de assassino.

Mistérios

Alguns fenômenos são misteriosos e permanecem enigmáticos ao longo dos anos. Quanto mais pensamos neles, menos os compreendemos. No mundo policial, em particular no campo de batalha e no universo do BOPE, não é diferente. É o caso de Lamartine Feitosa, cabo da PM, ex-companheiro, homem de valor, valente e leal, que se converteu e pediu afastamento do BOPE. Preferiu retornar a unidades convencionais, nas quais, também por opção, têm se empenhado em tarefas administrativas.
Outro dia visitei o Queiroz, subcomandante de um batalhão da zona norte, velho amigo. No meio da conversa apareceu o Feitosa. Bateu na porta, entrou cauteloso, sorriso sereno. Fiz uma festa quando o saudei. Ele parecia emocionado com o reencontro. Modesto, não se estendeu. Perguntou se podia providenciar um cafezinho, uma água, e passou ao subcomandante a papelada burocrática do dia.
— Com licença. Foi um prazer rever o senhor, capitão.
Prestou continência e saiu como o vento pela fresta da porta.
Queiroz confirmou que Feitosa agia sempre assim, desde que chegou ao batalhão. Furtivo, poucas palavras, educado, gentil, prestativo ao extremo, sem ambições aparentes, atencioso com todo mundo, mas evasivo. Fazia tudo para manter-se longe de ações externas, sobretudo da rotina de incursões e enfrentamentos.
— Na dele, sempre — disse Queiroz.
Mesmo assim, a tropa o respeitava como guerreiro. Afinal, tinha passado pelo BOPE e saiu porque quis. Seu conceito nunca havia sido questionado. O prestígio entre os caveiras estava intacto.
Queiroz completou:
— Não fala do passado no BOPE. Não gosta. Quando a gente pergunta sobre alguma ação de que participou, desconversa. Quando os colegas contam alguma história dos confrontos, se afasta. Disfarça e se afasta.
***
Eis o que aconteceu — e que não explica a mudança, mas a antecede.
Acostumado à rotina do BOPE — guerra à noite, descanso de dia, deslocamentos via transporte público —, Feitosa cochilava, no ônibus, voltando para casa, quando dois rapazes anunciaram um assalto. Armado e portando documento de identidade policial, sabia que era matar ou morrer. Instintivamente, sacou a pistola, ergueu-se no banco e atirou nos ladrões, que reagiram tarde demais e sem precisão. Os dois bandidos morreram, mas, felizmente, ninguém mais se feriu. A técnica o salvou, ele disse muitas vezes nos dias e nas semanas seguintes. O treinamento do BOPE o salvou. Agiu como guerreiro eficiente, veloz e preciso, graças à experiência. Feitosa repetia o que nós todos gostávamos de sublinhar: nenhuma outra tropa urbana do mundo tinha o privilégio de praticar, como nós, diariamente, as táticas de combate antiguerrilha. Por isso, éramos os melhores. Por isso, até os israelenses vinham aprender conosco.
Até aí, nada de novo. Nada excepcional. O episódio apenas demonstrava a perícia de nosso companheiro. Mas não foi assim que ele vivenciou a situação. Por algum motivo, a cena mudou sua vida. Mudou sua maneira de ver a profissão, seu jeito de falar, sua atitude. Se isso tivesse acontecido com qualquer pessoa, eu entenderia. Matar pode transformar muita coisa na cabeça de um indivíduo. No entanto, para Feitosa, matar era parte de seu ofício. Era parte de seu cotidiano. Por que aquelas mortes foram tão especiais?
Saindo do gabinete do Queiroz fui tomar um café com Feitosa. Senti que ele estava desconfortável, talvez porque eu arrastasse comigo um passado do qual ele participara, que era também seu e que ele preferia esquecer. Por isso, escolhi temas neutros. Falei de minha família, futebol, coisas assim. Ele foi se desarmando. Se eu bebesse, o convidaria para um chope. Ele teria me dito que tinha parado de beber. A religião proibia. Feitosa tinha se convertido. Era evangélico. Isso eu já sabia. Como estávamos sozinhos e a conversa nos aproximou, mostrei curiosidade por sua conversão. Quis saber como ele tinha descoberto a fé. Ele não se furtou a me falar de suas crenças. Por essa via, encontrei uma brecha para mencionar o episódio e lhe perguntei se o caso tinha sido decisivo ou tinha pelo menos contribuído para sua transformação espiritual.
A resposta de Feitosa não saciou minha curiosidade. Na verdade, me deixou angustiado. Fiquei com a sensação de que o campo vasto de minha ignorância ia se ampliado na medida em que as palavras do velho camarada pareciam fazer sentido.
Ele disse mais ou menos o seguinte:
— Quando atirei nos homens dentro do ônibus, eu estava lá e eles estavam lá. Havia mais gente, gritos, medo. Mas nós três estávamos lá. Um diante do outro. Fui eu que atirei no primeiro, capitão. Eu, Lamartine, o homem, a pessoa. Fui eu que atirei no segundo. Entendeu? O primeiro caiu pra trás. Morreu na hora. O segundo tombou de lado, emborcou, e sangrou muito antes de morrer. Duas vidas, capitão. Eram dois jovens. Olharam pra mim. Eu olhei pra eles. Nós nos olhamos.
— Você morreria se não atirasse, Feitosa. Tem dúvida de que eles teriam matado você?
— Teriam matado, sim. Mas não foi o que aconteceu, porque atirei primeiro. Quem matou fui eu.
— Ainda bem, Feitosa. Ou você está arrependido? Acha que errou? Não deveria ter atirado?
— Não errei, não.
— Pois é, legítima defesa.
— Eu sei.
— Então, por que isso perturba tanto você?
— Porque está errado fazer a coisa certa.
Acho que ele notou que fiquei pasmo. Tanto que retomou a palavra:
— Capitão, ouve. Presta atenção.
Feitosa repetiu o que tinha dito, com as mesmas palavras. Que os três estavam no ônibus, etc.
Então me calei. Desisti de entender, mas intuí que havia alguma coisa no que ele dizia, alguma coisa que tocava a verdade. E logo o presságio de que essa verdade se revelaria desapareceu sem deixar rastro. Voltei a me sentir perdido nesse emaranhado.
Um tempo depois, em que cozinhamos o silêncio em fogo baixo, ele acrescentou:
— Nas incursões, capitão, vestíamos uniforme.
E daí? pensei. Que diferença isso faz?
Feitosa prosseguiu:
— Nos confrontos, éramos partes de uma engrenagem.
OK, eu pensei. Tudo bem. E daí? Sem organização é impossível combater. Somos uma máquina. Máquina de guerra. Um mecanismo do Estado armado para matar. Qual a diferença? Uma pistola municiada funciona do mesmo jeito. O projétil disparado mata da mesma forma. A guerra e a legítima defesa são razões suficientes para justificar o tiro fatal. As situações se equivalem? Onde está a diferença?
O velho companheiro concluiu:
— Não estávamos sozinhos, capitão, mesmo que, fisicamente, em algum momento da ação, cada um de nós estivesse sozinho. Quem agia era a equipe. A vontade que a gente encarnava era da corporação. O cabo Feitosa participou de muitas operações e matou em combate. Eu nunca estive em nenhuma operação. Eu, Lamartine, nunca tinha matado ninguém.

Fontes: Blog de Luiz Eduardo Soares
O DIA ONLINE

* * *

Íntegra da entrevista que Bruno Natal, do Blog O Esquema/Urbe, fez com o diretor José Padilha sobre “Tropa de Elite 2″ para a revista de programação da na Net, Monet. A conversa foi há dois meses, infelizmente antes do entrevistador ter assistido o filme, mas vale muito a pena ser lida.

Bruno Natal – Passados três anos do lançamento do 1º filme, qual é a avaliação do “caso Tropa”? De lá para cá…

José Padilha – Qual dos casos? Tem quinhentos casos, cara…

BN – Do filme mesmo, como experiência mesmo. Da hora que começou, como repercutiu, etc.

JP – Olha, vou fazer um digressão aqui então… Quando fui fazer o primeiro filme eu só tinha filmado documentário. Nossa produtora não faz comercial, o que significa que eu saí de um set de quatro pessoas, três… De um set de documentário, para um set de 100 pessoas, com luz, com um monte de coisa, que era o “Tropa de Elite” - acho que era o maior filme daquele ano, em termos de orçamento - sem ter nenhuma experiência com set grande. O que é uma certa irresponsabilidade, vamos dizer assim, né? Uma porralouquice. Então, para mim, a experiência de filmar o “Tropa” foi muito legal. Porque irresponsabilidade não é uma coisa que falte aqui na nossa produtora. Então, a gente entrou tranquilo, com todo nosso cacife de irresponsabilidade e fez o filme que a gente queria fazer, né? Aí teve… Por isso eu perguntei qual dos casos, né? Bom, aconteceram uma série de coisas estranhas com o filme “Tropa de Elite.”

BN - A pirataria, por exemplo.

JP - A pirataria fez uma diferença brutal na historia do filme e não dá para avaliar o filme, sem avaliar a pirataria. Qual foi a principal diferença? Quando o filme foi lançado nos cinemas ele já estava lançado. Já tinha sido visto, segundo a Folha de S.Paulo, por 11,5 milhões de brasileiros. Depois a gente contratou o Ibope para fazer uma pesquisa e era isso mesmo. Acima de 16 anos, mais de 11 milhões de pessoas já tinha visto o filme antes de ele abrir no cinema. E já tinham escrito críticas sobre o filme antes de ele abrir no cinema. De forma que a recepção do filme não passou pela crítica. O público disse o que achava do filme antes da crítica se manifestar. As críticas que foram escritas antes de abrir no cinema, foram em cima do que o público tava falando. Foi uma experiência única, que não vai se repetir, eu acho, na história do cinema. Pelo menos na minha história eu acho muito difícil que se repita.

BN - Acha ou espera?

JP – Eu espero, né? Trabalho que nem um louco para isso não acontecer! É engraçado, porque você me perguntou qual a avaliação. A avaliação foi anterior ao lançamento do filme. Agora, não existe uma avaliação, né? Existe essa ficção, “qual a avaliação do público sobre o seu filme?” Como se o público fosse uma massa uniforme que tivesse uma só opinião. E não é assim que funciona. Dentro do público você tem milhares de pessoas diferentes. Cada um com sua opinião. Eu não me preocupo muito com isso…

Não fico lendo o que as pessoas escreveram. Eu não entro nessa linha. Eu faço meu filme do jeito que eu gosto, com as pessoas com quem eu tô fazendo. O Wagner Moura, Bráulio Mantovani, Dani Resende, Lula Carvalho, Marcos Prado e tal… Os outros atores. A gente olha pro filme, gostamos do filme e tal. Botamos o filme no festival, botamos o filme no cinema. E vamos em frente, tá certo? Eu não fico voltando sobre o projeto e analisando o projeto com base na opinião das pessoas. Porque isso seria uma receita para eu ficar maluco! Tem um milhão de opiniões diferentes sobre o “Tropa de Elite” publicadas. E sobre qualquer filme que eu tenha feito. Com o “Ônibus 174” foi a mesma coisa.

Então para resumir, qual é a avaliação? A avaliação é que a gente tinha uma produtora pequenininha fazendo um filme irresponsável, porque o tamanho do filme era muito maior do que o tamanho da produtora. E a gente lançou o filme e o filme funcionou para caramba. A avaliação é que o cinema contempla essa possibilidade, né? De um cara sair de uma posição super pequena pra fazer um filme que vira grande. Foi o que aconteceu com a gente.

BN – E a internet, que impacto teve no filme? Você avalia de uma maneira positiva ou negativa? Aposto que seja ambígua, né? Teve um fator positivo nisso, uma maior divulgação.

JP – Por internet, eu vou entender pirataria. Porque eu acho que no caso do “Tropa de Elite”, talvez 90% da pirataria não tenha sido via internet.

BN – Tem razão. Foi banquinha?

JP – Tenha sido via DVD. Eu, por exemplo, vi… Me ligaram, me falaram o que tava acontecendo e eu fui ver pessoalmente. Eu vi, na barca de Niterói, uma televisão com 10 ou 15 cadeiras, pessoas sentadas esperando a barca, vendo o filme. Pagaram um ingresso de dois Reais. Ou seja, foi pirateado o cinema, não foi só o filme. O cara pirateou o cinema inteiro. Fez um cinema pirata. Foi um fenômeno sociológico, não sei explicar. Porque o filme não teve mídia nenhuma no seu lançamento. Vazou um DVD e esse DVD foi copiado, começou a ser vendido, caiu no gosto das pessoas e se espalhou pelo Brasil inteiro. Não só pelo Brasil, tinham pessoas que me ligavam: “Tô aqui em Bali vendo seu filme!”, “Tô aqui não sei aonde vendo seu filme”. “Tô aqui em Portugal”, “em Angola”…S e espalhou pelo mundo, né? Foi um fenômeno sociocultural o que aconteceu com o filme.

Uma parte desse fenômeno depende da internet, outra parte – que é a maior no Brasil – não depende da internet, né? Depende das redes de piratarias de DVD que estão estabelecidas aí. É bom, é legal para um cineasta que seu filme comunique dessa forma, espontaneamente? É, é muito legal que o filme comunique, eu fico feliz que o filme tenha comunicado com as pessoas. O que não significa dizer que pirataria é bom. Não, pirataria é péssimo. Pirataria é sonegação de imposto, pirataria é corrupção policial… Eu mesmo fiz imagens de policiais andando na frente sãs banquinhas enquanto o camelô estava vendendo o DVD. Bom, certamente não é de graça esse passeio policial ali. O policial não está prendendo o camelô por algum motivo, né?

Pirataria é competição desleal. O sujeito que está lá na sua loja de DVD, fazendo seu filme, vendendo seus filmes, alugando e pagando imposto está competindo com o cara que não paga imposto, tá certo? Pirataria é ruim, ponto. Então, é bom ter um filme popular? Muito bom. É bom ter um filme pirateado? Não, muito ruim. É isso.

BN – Você acha que isso afetou o desempenho do filme nos cinemas para baixo ou para cima?

JP – Eu acho que a pirataria aumentou o público do filme como um todo. Ou seja, se você somar todo mundo que viu na pirataria, mais todo mundo que viu no cinema, mais todo mundo que viu na televisão, mais todo mundo que viu no cabo, no Brasil, se você fizer essa soma… Se você tirasse a pirataria, se o filme fosse lançado sem pirataria, esse número agregado seria menor. Mas, o cinema perdeu muito para a pirataria, né?

Como eu te falei, a gente contratou o Ibope para fazer uma pesquisa depois do filme lançado. E o número que o Ibope deu para gente, foi que o filme perdeu 2/3 da sua renda de cinema. Ou seja, se o filme fez 2 milhões e 300 mil [ingressos], podia ter feito seis [milhões]. Perdeu. Significa que a gente teve uma perda financeira grande. Não existe mágica, tá certo? Se alguém pegou o seu filme e distribuiu ele antes da janela de cinema e ele foi visto, evidentemente que você perdeu gente no cinema. Não tem como escapar. Por isso que todos os contratos, de todas as distribuidoras no mundo têm janela, entendeu? O cara não pode lançar em DVD antes do cinema, porque já está auferido pelo mercado, na sua história, que você perde público no cinema se você furar a janela.

BN – É que há quem diga que no caso da música – onde já há alguns estudos mais precisos disso – que muito desse público talvez não fosse ver o filme e viram porque estava disponível dessa maneira.

JP – Por isso que o valor agregado, o número agregado, quando você soma a pirataria, é maior. Mais pessoas viram o filme, eu acho, mas o número do cinema caiu. O sujeito que bota dinheiro pra fazer um filme não tá interessado num número agregado, ele tá interessado no dinheiro que volta para pagar o filme, tá certo?

BN – Bom, então tá. Passado esse período do primeiro para o segundo filme, algumas mudanças estão acontecendo na política de segurança pública do Rio. O filme continua relevante nos assuntos que estão ali?

JP – Qual filme continua relevante?

BN – O “Tropa 1”.

JP – Totalmente. O assunto principal do “Tropa de Elite 1”… Vamos fazer aqui uma pequena digressão. Eu fiz dois filmes sobre violência urbana: Fiz o “Ônibus 174”, que conta a história da violência urbana do ponto de vista de um marginal, né? E que se pergunta como que esse marginal se formou. E conta a história da vida da pessoa para explicar o comportamento dele dentro daquele ônibus. Grosso modo é isso. E o que você descobre quando olha a vida daquele marginal? Que também se chama Nascimento, não por acaso. Você descobre que ele foi maltratado, sobretudo pelo Estado. O Sandro vira menino de rua e menino de rua é responsabilidade do Estado. E o que acontece com ele quanto ele é menino de rua? Primeiro o Estado não pega ele, não ensina ele, não educa ele. Ele fica na rua, ele apanha da polícia, ele é achacado por policial, ele fica jogado na Candelária… Ele vê seus amigos serem assassinados na Candelária… Quando é preso ele vai para o Padre Severino, e o Padre Severino é uma escola de criminalidade, etc. Na medida que você olha para o filme, você se dá conta que quem produz o lado marginal do Sandro é o Estado. Nós mesmos, com o dinheiro do nosso imposto, vamos dizer assim né?

O “Tropa de Elite” é a mesma coisa ao contrário. Quem produz o Capitão Nascimento? Quem produz o policial violento? Quem transforma o Matias numa pessoa capaz de dar um tiro de Calibre 12 na cara do traficante? O Estado. O Estado é que mantém e tem uma organização corrupta e violenta como a Polícia Militar do Rio de Janeiro, né? Faz parte da cultura organizacional da PMERJ esse tipo de comportamento. Está arraigado na cultura. Não da cultura formal, pois se você pegar o formalismo da PM, não tem lá esses comportamentos, mas todo mundo sabe que as organizações têm culturas formais e culturas informais. E que no final das contas, a cultura informal vale mais. Isso é o tema do “Tropa de Elite I”.

Agora eu pergunto para você ou para o telespectador: A PM não corrompe mais? A PM não mata mais? O “Tropa de Elite” está ultrapassado? Não está, né?

BN – O que motiva o “Tropa de Elite II”? É uma continuação desse assunto?

JP – Uma das coisas que eu não vou fazer é contar para você o filme.

BN – Sim, sim. O que te motiva a fazer um segundo filme sobre o mesmo tema?

JP – Um terceiro filme.

BN – Um terceiro filme sobre o mesmo tema. Mas, no caso, um segundo com os mesmos personagens.

JP – Então, o que me motiva a fazer um filme qualquer sobre um tema qualquer? E isso faz parte do estilo dos meus filmes, é tentar dar alguma compreensão – como se fosse uma crônica social - ao público sobre esse tema. E colocar essa compreensão numa estrutura dramática que funcione como cinema.

Então, eu vou dar um exemplo de novo indo para o documentário. Quando eu conto a história do Sandro… A história do Sandro aconteceu de maneira linear no tempo, tá certo? Começou com ele pequeno, foi crescendo… Como qualquer história no mundo real. No documentário eu começo ele no ônibus. Faço um flash forward, né? Por que eu faço isso? Porque eu achei que o flash forward era melhor pra dramaturgia do filme.

Em outras palavras, qualquer filme, inclusive documentários - principalmente documentários - tem duas dimensões: tem uma dimensão epistemológica, da relação do filme com a realidade e uma dimensão dramatúrgica, que é inerente ao filme, para fazer o filme funcionar como cinema. O quê eu me interesso por fazer? Filmes que tenham essas duas dimensões, mesmo na ficção. Um documentário necessariamente vai ter isso, né? Na ficção não necessariamente. “Star Wars” não tem uma dimensão epistemológica, porque “Star Wars” é sobre um universo que não existe, né?

Nos três filmes que eu fiz sobre a violência até agora, “Tropa I”, “Tropa II” e “Ônibus 174”, eu tentei criar uma estrutura de dramaturgia que refletisse aspectos do mundo real. De modo a usar a dramaturgia do filme para gerar debates que eu considero relevantes. Pode chamar isso de cinema político, cinema engajado, como você quiser.

Nos três filmes eu não me preocupei em dar para o público, tempo de reflexão dentro do filme. Nunca me preocupei com isso. Eu não compro a ideia de que eu tenho que afastar o público da história, ou da dramaturgia para o público pensar, numa sequência lenta e arrastada e etc durante o filme. Eu acho que é melhor pegar o público pela emoção e dar todo impacto da história e deixar o público pensar em casa. Tem gente que não gosta disso. Tem 15mil comentários aos meus filmes nesse sentido, “não tem tempo de reflexão dentro do filme”, como se a pessoa não pudesse pensar depois sobre o filme. Como se fosse vedado o pensamento pós-crédito, tá certo? Eu fiz a mesma coisa nos três filmes.

O “Tropa de Elite 2” lida com assuntos que eu não lidei no “Tropa de Elite I” e nem no “Ônibus 174”. Que assuntos são esses você vai ver quando você vir o filme. Eu não faria o filme se não fosse para falar sobre outra coisa. Eu não me interesso em fazer o filme, é muito trabalho, muito tempo, muita ralação, muito risco fazer um filme. Eu, particularmente, não me interesso em fazer um filme que seja só de entretenimento. Nada contra quem faz isso. Não tenho nada contra isso, mas eu não tenho, vamos dizer, paciência para fazer.

Então a gente fez a mesma coisa: Pesquisa… Pesquisamos durante dois ou três anos o tema sobre o qual a gente vai falar, que é milícia, tem a ver com milícia. Não tá falado nem no primeiro filme, nem no segundo filme. Olhamos horas e horas de material da CPI das milícias, transcrevemos todo esse material, estudamos a história da CPI das milícias que teve no Rio de Janeiro agora para entender como que a milícia funciona.

Fizemos uma pesquisa enorme e dessa pesquisa entramos da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado - que é a DRACO – que prendeu os milicianos todos que foram presos. Estudamos os processos todos da DRACO, entrevistamos as pessoas, quer dizer, fizemos um trabalho longo e árduo para fazer um filme que fale sobre um assunto que é muito atual – e que não está sendo lidado direito na minha opinião – no Rio de Janeiro.

Você pode, por exemplo, você perguntou com relação ao que mudou na segurança pública. O que mudou na segurança pública foram essencialmente, na minha opinião, duas coisas: a primeira coisa foi a despolitização das delegacias e dos batalhões. Ou seja, o Governador – antigamente por exemplo, na época da Rosinha Garotinho e do Garotinho – indicava, ou dava para algum vereador, o direito de indicar tal delegado, tal policial militar, etc. O que gerava parte da corrupção que a gente vê na polícia. Parte, não toda. O Sérgio Cabral teve o mérito de acabar com isso. Ele acabou com isso e foi fundamental na segurança pública.

A segunda coisa que mudou na segurança pública não foram as UPPs, foram três coisas que mudaram. A segunda coisa foi essencialmente feita por um cara, Marcelo Freixo, do PSOL, que conseguiu emplacar duas CPIs importantíssimas na ALERJ. Uma não foi nem um CPI, foi o processo de cassação do Álvaro Lins, ex-chefe de policia, com uma série de denúncias de corrupção e Deputado Estadual. O Marcelo conseguiu cassar o Álvaro Lins, apesar de ele não ter partido. Isso mudou, mandou um recado: “Olha só, a impunidade não é total”. E a segunda CPI que o Marcelo fez, foi a CPI das milícias, que prendeu uma série de pessoas, cassou Deputados Estaduais, etc, e que revelou uma conexão que existia, muito forte, entre a milícia e a política. A milícia elegia pessoas, a milícia tomava uma favela, não só fazia dinheiro como caixa de campanha, como pegava o voto daquela favela e alocava no processo político. Isso não está dito em nenhum filme que eu fiz e em nenhum filme que ninguém fez, que eu conheça, até hoje.

E a terceira coisa que mudou, foram as UPPs. As UPPs provaram… As UPPs não são processos…Tem que entender direito o que é uma UPP. Uma UPP não é uma luta contra o tráfico, não resolve o problema do tráfico. O tráfico de drogas continua. E ele nem se propõe a resolver o problema do tráfico. O que ela faz é: tirar um traficante armado de uma favela e ocupar com a polícia. O tráfico continua. Você continua comprando drogas no Rio de Janeiro. Não acabou tráfico de drogas. O que ela faz é mostrar que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro não precisa necessariamente ser violento. Por exemplo, existe tráfico de drogas na Inglaterra e as pessoas não se matam na rua. Não é isso? A UPP faz isso. E recupera o território que um grupo armado tinha tomado - frupo armado era um grupo de traficantes que tomou normalmente uma favela- e recupera a dignidade das pessoas que moram ali, que não mais controladas, ou administradas por aquele grupo armado.

A UPP é muito boa nesse sentido e eu acho que no curto prazo e no médio prazo, a UPP só vai ser positiva, só vai melhorar os índices de violência no Rio de Janeiro. Sou a favor da UPP, porém, no longo prazo, quem está ocupando a favela no lugar do traficante? É a polícia. Como que funciona a nossa polícia? No longo prazo, se não reformar a polícia, pode ser que a UPP não seja tão boa assim.

BN – Porque até circular… vai cair na milícia de novo. O que é de certa maneira isso, né? UPPs independentes.

JP – Então, você acabou de concluir, por si mesmo, qual é a relevância do filme “Tropa de Elite II”.

BN – Você falou do projeto de pesquisa ser importante e como seu trabalho como documentarista influencia seu trabalho como cineasta de ficção. Seu primeiro filme sobre o tema é um documentário. O “Tropa I” foi feito baseado na pesquisa do livro “Elite da Tropa”, né? Foi o que inspirou?

JP – Na verdade não, foi ao contrário. A gente fez a pesquisa toda do filme. Eu fiz com o Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE, agora jornalista. Com o André Batista e com vários policiais que eu entrevistei. Aí eu escrevi um roteiro com o Pimentel, do filme. Quando eu estava lá no sétimo tratamento, eu chamei o Luiz Eduardo Soares e falei: “Olha, tem um milhão de histórias aqui, eu não consigo contar todas. Faz um livro sobre isso”. Nosso roteiro é um roteiro original, não-adaptado, o livro é que nasceu do filme. Só que o livro foi lançado antes.

BN - E agora “Tropa II”, como você disse, também nasce de uma pesquisa grande, você foi atrás de casos reais. Então é uma pesquisa.

JP – Eu não tenho nenhuma imaginação, né? Tenho que buscar as coisas na realidade… (risos)

BN – Pois é. E ao mesmo tempo é um documentário. Você acha que isso é uma característica do seu trabalho, que permanece?

JP – É, permanece no “Tropa III”. Eu nunca fiz um filme que não seja sobre um assunto real, então eu sou obrigado a dizer que isso é uma característica do meu trabalho. Não quer dizer que eu não vá fazer outra coisa amanhã, mas até agora é isso aí.

BN – Então vai ter “Tropa III”, é certo?

JP – Eu falei “Tropa III”, mas é “Tropa II”. Se tiver um “Tropa III”, vai ser “Tropa 3D”! (risos)

BN – Você vê essa nova realidade que você descreveu, esse cenário que vem se desenhando das UPPs, como uma possibilidade de um abordagem para um novo filme? Você tem interesse?

JP – Olha só, o processo das UPPs está no comecinho. O Rio de Janeiro tem mais de 1.700 favelas. Quantas favelas foram ocupadas? Quinze, né? E não é um processo que está dado. Isso não é uma história que acabou, tá certo? É um ótimo projeto, é um bom começo e é o óbvio ululante. A UPP coloca uma pergunta. A UPP não tá mostrando que é facílimo recuperar as favelas? Quantas trocas de tiros tiveram? Né? Nenhuma e tal, estamos aí retomando e tal… A pergunta que eu faço é a seguinte: Então por que não fez isso antes?

Não é obrigação da polícia fazer isso? Não é fácil fazer? Por que foi necessário um programa de governo, um nome UPP, o apoio da mídia para fazer o que a polícia tinha que ter feito há quinhentos anos atrás? Essa é uma pergunta que eu estou colocando não para jogar lama na UPP, porque eu sou a favor da UPP. Mas é uma pergunta que revela alguma coisa. E revela o quê? Revela que a polícia não tinha interesse na UPP. Nunca teve, está certo?

Se a polícia não tinha interesse na UPP e teve que vir de cima para baixo, faz você pensar: “Que polícia é essa?” Porque é essa polícia que está ocupando a favela. Está certo? Porque se você olhar com calma para a UPP, você vai ver o seguinte: Qual policial que a Polícia Militar coloca nas operações de UPP? Entra primeiro o BOPE, o traficante corre. Avisa na mídia que vai ter a invasão, o traficante corre. Porque está totalmente certo. Totalmente certo, na minha opinião. O traficante corre, a polícia entra. Aí quem fica lá na ocupação? Primeiro é o BOPE, que é uma polícia que não é corrompida igual à outra. Aí o BOPE sai, aí entram os aspirantes, os caras que acabaram de se formar na PM. Por que eles não mandam o policial antigo pra UPP? É uma pergunta que eu não preciso nem colocar a resposta.

Aí você faz uma conta: Quantos policiais novos a gente tem? Não têm muitos. Quantas favelas a gente tem? 1.700 Então a UPP é um projeto de longuíssimo prazo, não é um projeto instantâneo.

BN – O que é bom, né?

JP – É ótimo! Você tem que ir formando os policiais, novos, e colocando na UPP. Mas aí tem uma pergunta. O que acontece com o policial novo depois que ele fica velho? Porque ele é um policial que ganha o mesmo salário do policial antigo e que opera na mesma organização. O que a organização faz com o policial? Bom, esse é o tema do “Tropa de Elite I”, você já viu, né? Então é o seguinte: A UPP é meio projeto. É metade do projeto.

Ocupação territorial das áreas que estão com tráfico? Ótimo! Sou totalmente favorável. Agora cadê a outra metade? Porque a outra metade é a reforma da polícia. Se não tiver a outra metade a gente corre o risco de estar substituindo o tráfico por máfia. Máfia mata mais do que tráfico? Não, mata menos. Os números da violência vão cair.

Mas, máfia tem outros problemas. Quantas armas da milícia o BOPE já apreendeu? Zero. A polícia vira quase inútil para enfrentar a milícia, tá certo? Milícia é um nome brasileiro para máfia, no fundo é máfia. Então, o que eu estou falando? Cuidado! Faz a UPP? É claro que tem que fazer, mas cadê a reforma da polícia? Porque senão daqui a pouco a gente pode estar fazendo uma coisa ruim.

BN – Você tem vontade de fazer um terceiro filme abordando esses novos temas?

JP – Já fiz. Isso está no “Tropa II”. O que eu estou falando com você agora é um discussão que o “Tropa II”coloca.

BN – Tem UPP no “Tropa II” então?

JP – Não vou te contar o filme! (risos) Mas eu te digo o seguinte: Eu posso colocar essa discussão sem usar o nome UPP.

Olha só, eu ocupei uma favela, tirei os traficantes de lá. A favela mudou de nome? UPP é Unidade de Polícia Pacificadora. Quer dizer que a outra polícia que está nas outras favelas, que não é UPP, não é pacificadora? É o quê então?

Vou repetir, eu acho UPP um projeto maravilhoso. Uma coisa que a UPP mostra, na minha opinião, é que o tráfico tem um componente cultural. O tráfico tal qual ele existe no Rio de Janeiro. O tráfico que anda com AR-15 e dá tiro, tem um componente cultural. É um negócio que passa de geração em geração dentro da favela. O garoto lá… A criança nasce e quando tem problema familiar e uma série de motivos, vê aquele cara armado e “pô, o cara armado manda em todo mundo”. Tem um componente de reprodução cultural. Isso está demonstrado em quinhentas mil teses sociológicas… Desde a tese da Alba Zaluar …Pois é, tá demonstrado. Em suma, quando você coloca a UPP lá, se ficar por algum tempo, ela quebra a transmissão dessa cultura. Ela não acaba com o tráfico, mas o tráfico não fica violento. O que é muito melhor. Então a UPP é joia, é nota dez.

Por exemplo, no “Tropa de Elite II” não tem nenhuma crítica a UPP. Você não vai encontrar. Tem só um alerta: “Olha só, cadê a outra parte do projeto?” Porque se não botar a outra parte do projeto funcionando, o projeto tende a dar errado. E quanto tempo você tem para fazer a segunda parte do projeto? Você calcula. É fácil calcular. Quantas favelas você tem que ocupar, qual a ordem de ocupação, quantos policias novos por ano, quando é que vão acabar os policiais novos, tá certo? Quando é que os novos vão ficar velhos… Você calcula esse prazo. Eu acho que tem aí uns dois, três anos pra fazer isso, se não fizer vai começar e ter problema.

BN – E foi essa nova realidade que te inspirou a fazer o “Tropa II”? Foi isso que deu a coceirinha: “Tá na hora de fazer de novo.”?

JP – Foi. A gente conversou, assim. O “Tropa” é um filme de “patota”, vamos dizer assim, né? Para usar um termo velho, né? Então é uma coisa que eu fui conversando com o Wagner, com o Marcos, com o Bráulio, com o Dani Resende, com o Lula Carvalho, e tudo mais… “Pô, será que a gente faz esse filme? Tem um monte de gente que está falando pra gente fazer”.

Mas pô, a gente claramente só queria fazer se a gente achasse que era relevante fazer. E eu criei uma série de conexões com o mundo da Segurança Pública, através dos meus filmes. E a medida que eu ia conversando com o Wagner, e tal, eu ia também conversando com algumas pessoas que eu conhecia que estavam nesse mundo e que começaram a me falar esse tipo de coisa que eu tô te falando aqui. “Pô, olha só: UPP é legal, mas tem um problema aqui. Olha o que tá acontecendo com o Rio de Janeiro. Olha como foi a CPI das milícias. Dá uma olhada, porque a CPI das milícias prendeu os milicianos, mas não acabou com as milícias. A milícia fragmentou , mas ela continua.

O Marcelo Freixo, por exemplo, foi o cara que fez a CPI das milícias, né? O Marcelo Freixo não pode fazer campanha na Zona Oeste. Ele morre. Ele não pode. Já está avisado: “Se você fizer campanha aqui na Zona Oeste…”. As pessoas das favelas da Zona Oeste não podem ter um “santinho” do Marcelo Freixo. Isso é seriíssimo, não é brincadeira. A milícia tá aí.

BN – E qual foi a diferença do processo de filmagem do “Tropa I” e do “Tropa II”, no sentido em quê no primeiro o filme foi ganhar atenção com aquele caso do roubo das armas lá no Babilônia. Quando teve aquele “troço” que todo mundo pensou “ppa, tá fazendo um filme sobre isso?”. O pessoal do meio sabia, mas fora não sabia direito. Agora no “Tropa II” já muda tudo. Isso torna a coisa mais fácil ou mais difícil?

JP – Mais fácil, na média é mais fácil. No primeiro filme a gente só tinha feito documentários. Tava fazendo um projeto de, sei lá, 10 milhões de Reais. A gente nunca tinha feito um projeto de mais de 700 mil. Como que levanta esse dinheiro? É difícil. Depois a gente tinha feito o “Ônibus 174”, que é bastante agressivo com a polícia e com o governo Garotinho em particular. Então quando eu ia filmar o “Tropa de Elite I”, a Governadora era a Rosinha, então a gente não tinha acesso, não conseguia autorização, a polícia queria ler o roteiro… Uma coisa maluca, que deu um trabalho grande para conseguir. Se não fosse o Fernando Pelegrino, um amigo meu, explicar pro Governo Garotinho que não se pode censurar cinema, a gente não tinha conseguido. A gente conseguiu, mas deu muito trabalho.

No segundo filme foi muito mais fácil. As autorizações saíram rápido, ninguém pediu pra ver roteiro, a polícia colaborou para caramba. O atual comandante da PMERJ é uma pessoa honesta, séria. Ele ajudou a gente porque ele entendeu que é bom para a polícia haver crítica, então deixou a gente filmar dentro do 3º Batalhão, a gente filmou no Palácio do Governador, dentro do BOPE. Foi infinitamente mais fácil. E como o segundo filme não fala muito, fala um pouco, mas não fala muito, sobre tráfico, eu não filmei em favelas que estavam ocupadas pelo tráfico como eu fiz no primeiro filme. Você falou, no Babilônia, Prazeres, etc. Então, foi muito mais fácil.

BN – Você creditaria isso a uma mudança já de mentalidade ajudada pelo Tropa I”?

JP – Eu acho que sim. Com certeza. Foi mais fácil levantar dinheiro também.

O “Tropa de Elite I” não é inimigo da polícia ou do policial honesto. Não é. Por que seria? Tá dizendo “olha, policial não recebe dinheiro, a policia tá jogada as traças, isso gera corrupção dentro da polícia”. Para lidar com uma polícia tão corrupta, que não consegue operar direito, o Governo teve que fazer uma polícia, é… maluca.

Para você isolar o policial especial, o BOPE, da corrupção que campeia uma organização policial, você tem que aquartelar ele num lugar diferente. Você tem que doutrinar ele do jeito que ele é doutrinado, senão ele vai virar igual ao outro. Aí a polícia ao invés de acabar com o problema da corrupção, fez isso. Gerou um batalhão que tortura, mata, se considera superior aos outros, etc. que é o BOPE. O filme fala isso. Nada disso é bom. Então falar isso, alertar para isso é a favor da polícia. Ou será que a gente quer uma polícia corrompida e violenta? Não quer. Então algumas pessoas – e por sorte o Mário Sérgio, por exemplo – entendem isso dentro da polícia.

Não vou dizer que a polícia inteira concorda com isso. Não concorda, tanto assim que o “Tropa de Elite I” gerou um número enorme de ações na Justiça, de policiais. Os oficiais do BOPE processaram o filme, uma série de policiais convencionas processaram o filme e etc. A polícia como um todo, não concorda, mas essa chefia da polícia que está aqui, concorda hoje. Pode ser sorte. E também é mais fácil levantar dinheiro para o “Tropa de Elite II” do que para o “Tropa I”, porque já existia o “Tropa I”, né?

BN – E teve alguma coisa parecida com esse incidente das armas no Babilônia ou foi mais tranqüilo dessa vez?

JP – Foi muito mais tranqüilo. Ah, bom, teve algumas coisas, sempre tem. Por exemplo, a gente estava filmando uma cena na Zona Oeste, da execução de uma testemunha contra as milícias. A cena era essa. A gente tava lá, 2 da manhã, preparando pra rodar o 1º take quando chegaram 20 carros de polícia, pararam, encostaram… Só que eles não vieram na filmagem, eles viraram numa ruazinha perto, à direita e tal… Aí o cara da segurança da nossa filmagem foi ver o que era… Era uma execução da milícia. A milícia tinha executado um cara num botequim a dois metros da filmagem que a gente ia fazer, que era sobre o mesmo assunto. Quer dizer, a filmagem é no Rio de Janeiro. As coisas que acontecem no Rio de Janeiro

Olha só, não vamos imaginar que acabou a violência no Rio de Janeiro porque a gente fez dez UPPs. Quantos autos de resistência têm no Rio de Janeiro? Antes das UPPs, ainda na vigência do Sérgio Cabral, teve mais de mil autos de resistência. O que é um auto de resistência? É um policial que matou alguém que estava resistindo à prisão. Teoricamente. O policial declara que foi isso que aconteceu. A gente tem que entender que número é esse. Nos Estados Unidos a policia mata 200 pessoas por ano, em uma população de 300 milhões. No Rio de Janeiro, a polícia matou mil pessoas em um ano, numa população de 11 milhões, né? Não é brincadeira isso. Não vamos imaginar que a Segurança Pública está resolvida com a questão da UPP. Não está. É um passo ótimo para resolver, mas se não reformar a polícia, não vai resolver.

BN – E que filme você gostaria de fazer? Que realidade você gostaria que existisse para te inspirar a filmar?

JP – Problema social, meu amigo, vai existir. Existe desde o primeiro minuto da história da humanidade e vai existir sempre, tá certo? Eu não imagino e não acredito na Utopia, tá certo? Então, se o meu problema fosse “pô, eu só faço filme sobre problema social, o que eu faria se acabassem os problemas sociais? É isso que você está me perguntando? É uma pergunta meramente retórica, porque os problemas sociais não vão acabar, infelizmente.

Tem uma série de filmes que eu me interesso por fazer. Eu, por exemplo, fiz um filme agora que não fala diretamente de problema social. Fiz um documentário chamado “Segredos da Tribo”, que abriu no Sundance esse ano. Que fala sobre a filosofia da ciência, sobre epistemologia, sobre a incapacidade de um determinado grupo social - no caso os antropólogos - de produzir conhecimento confiável. E por que isso acontece, etc. Que é um outro assunto completamente diferente de segurança pública. Eu fiz um outro filme, que é o “Garapa”. Que é um outro documentário que teve em Berlin ano passado. Que fala sobre como uma família lida com falta de alimento. Eu faço uma série de filmes que não são sobre segurança pública, agora todos eles são sobre assuntos reais. Porque como eu te disse, a minha imaginação é curta.

BN – Agora, para fechar, uma pergunta pedida pela revista. Como o diretor vê no Brasil a questão de patrocínio através de leis de incentivo à cultura?

JP – Bom, eu acho que o cinema brasileiro, o teatro brasileiro e uma boa parte da música brasileira não existiria sem o incentivo à cultura. Isso é um fato, por vários motivos. De modo que, como eu gosto da cultura, eu gosto de ver show de música, eu gosto de ir ao teatro e gosto de ir ao cinema, eu sou a favor do incentivo.

Essa realidade da impossibilidade econômica de uma atividade - no caso a cultura - em determinado lugar, não é uma realidade única do Brasil. A cultura, o cinema, por exemplo, é incentivado na França, é incentivado na Inglaterra. Ele é incentivado no mundo inteiro, com exceção dos Estados Unidos e da Índia. O mundo inteiro, ou a maior parte dos países que têm cinema, têm cinema porque fez uma opção pelo incentivo fiscal. Eu sou favorável ao Brasil ter cinema. Acho que é importante para o Brasil ter cinema. Acho que o cinema faz mais do que gerar emprego. O cinema catalisa, ou pode catalisar, discussões importantes na sociedade. O cinema é entretenimento, que é importante. E o cinema exporta uma cultura, né? Cinema é mais do que parece. Eu acho importante o Brasil ter cinema. Acho que o Brasil não está pronto para ter cinema sem (a lei do) Audiovisual. Acho que não consegue fazer isso. Não é possível fazer isso. Então assim, a Lei do Audiovisual tem que continuar.

Qual é o modelo correto para o incentivo fiscal? Eu não acho que o modelo que está aí seja ruim. Pelo contrário, eu acho até que ele tem grandes méritos. Por exemplo, a ANCINE, que é a agência de cinema, avalia os projetos do ponto de vista orçamentário, do ponto de vista jurídico. Ela faz um trabalho que eu acho fundamental, que é analisar se o sujeito prestou contas. Se usou o incentivo fiscal direito ou não. Porque a gente tem aí na história do cinema brasileiro desvios nesse sentido. Ela empresta seriedade no processo. Então, isso é bacana. E ela não analisa o conteúdo do projeto. A ANCINE não reprova o projeto porque ele está falando A, ou B, ou C. O que é muito bom, muito bom! Porque o cineasta faz e se exprime da forma como ele quiser, né? O cinema brasileiro é verdadeiramente independente.

Eu vou a muitos festivais no mundo inteiro. Eu já participei de alguns painéis de festivais. Participei em um painel em Sundance sobre o cinema independente americano. Quando eu expliquei lá como é que funcionava o cinema brasileiro, felicidade geral. A felicidade das pessoas foi absurda, “Vocês são muito felizes, porque eu para fazer um documentário eu tenho que discutir com o canal que está financiando, eu tenho que fazer no modelo deles, eu não posso dizer isso, eu não posso dizer aquilo”. Ou seja, o Brasil tem um modelo muito para o cinema independente. Eu gosto.

Existem ajustes possíveis a serem feitos nesse modelo, para tornar ele melhor? Existem. É possível melhorar, mas é perigoso também mexer. Por exemplo, uma ideia do tipo: “Vamos concentrar o incentivo fiscal numa entidade pública e ela vai decidir que filme é feito?” eu acho péssimo. Eu prefiro que o empresário, que tem imposto a pagar, decida o filme a ser feito, do que, sei lá, a Embrafilme, entre-aspas, certo? Porque aí vira uma questão de a cultura que é feita é a cultura que o Estado decide que deve ser feita. O que é péssimo. Todas as sugestões que são feitas no sentido de melhorar o Audiovisual, que passem por um controle Estatal do conteúdo, para mim são piores do que agora.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Desligue o computador e vá ler um livro ...

... ou uma revista. Mas não sem antes dar uma conferida neste post, com minhas dicas de leitura mais recentes:

EU SOU OZZY – Este livro está, literalmente, me tirando o sono, mas por um bom motivo: é tão divertido que eu simplesmente não consigo parar de ler. Na primeira sentada devorei mais de 140 páginas de uma vez, o que é raro pra mim, e só dei uma pausa porque os raios do sol começavam a entrar pelas frestas da janela e eu me toquei que já eram 4:30 da manhã. Trata-se da autobiografia de Ozzy Osbourne, escrita numa linguagem fluente e coloquial. É como se o próprio “madman” estivesse sentado na sua frente relatando informalmente tudo o que ele conseguia se lembrar dos anos loucos (e bota loucos nisso) com o Black Sabbath, seguidos da ainda mais louca fase solo. São muitas histórias, mas engana-se quem pensa que Ozzy tem uma mente lesada ao ponto de não fazer observações rebuscadas e inteligentes sobre alguns assuntos pertinentes: num dos trechos que li ontem, por exemplo, ele comentava o fato do guitarrista virtuoso Randy Rhoads não demonstrar muito entusiasmo pelo Black Sabbath. “Não entendo como uma musica como “Iron Man” faz tanto sucesso, qualquer criança pode tocar aquele riff”, ele dizia, no que Ozzy retrucou: “Randy, se funciona, não importa se é simples ou complexo. A primeira vez que eu ouvi “you really got me”, do Kinks, eu enlouqueci, toquei tanto o disco que quase gasto a agulha da velha vitrola de meu pai”. “É, pode ser”, ponderou Rhoads. O episódio ilustra bem as diferenças entre os gênios criativos que tiram leite de pedra a partir de suas limitações, como o prório Tony Iommi, e os que baseiam sua arte no estudo meticuloso da técnica, muitas vezes em detrimento do sentimento, do “feeling”, como Yngwie Malmsteen, Joe Satriani ou o próprio Randy Rhoads. Gosto do estilo de Randy, é supertécnico mas não chega a ser “frio” e calculista como o de alguns de seus pares, mas ele estava longe, muito longe, de ser um gênio da guitarra como Tony Iommi, um cara que criou, sozinho, toda uma nova corrente musical dentro do universo do rock and roll. Em outras palavras: Randy Rhoads era um excelente guitarrista, mas Tony Iommi é Deus.

Outro ponto interessante a se notar durante a leitura é a impressionante quantia de dinheiro que era gerada no “showbizz” naqueles tempos pré-internet e downloads de música farto e gratuito. Os caras simplesmente ligavam para seu “manager” e pediam qualquer coisa, um rolls royce, um cortador de grama, drogas e muitas garotas, evidentemente, e o objeto do desejo simplesmente se materializava na frente deles no dia seguinte, como num passe de mágica. Evidentemente isso gerava uma certa acomodação nos músicos – o própio Ozzy admite, em vários trechos, que começou a se comportar como um rockstar idiota, egocêntrico e egoísta. É de se pensar se não será benéfica esta mudança que se configura no horizonte – não que os músicos não mereçam ser remunerados pelo seu trabalho, mas também não precisam ser paparicados ao ponto de se sentirem semideuses caminhando entre os mortais. Até porque quem tem a música no sangue vai continuar a produzir, de uma forma ou de outra. Quem viver verá ...

Fora isso, o livro é, basicamente, uma sucessão absurda de situações inusitadas e muito engraçadas que vale muito a pena ser lida até mesmo por quem não é fã de Ozzy ou de Heavy Metal em geral – não por acaso é um sucesso de vendas em todo o mundo. Vou contar apenas uma delas: Eles estavam cheirando tanta coca que Ozzy começou a suspeitar que deveriam estar na mira de algum órgão do governo e entrou em paranóia. Num determinado dia, ele ligou o condicionador de ar da casa onde estava alojado com o Black Sabbath e, em seguida, começou a ouvir sirenes se aproximando. Todos entraram em pânico e Ozzy, junto com um membro da equipe, dispararam para o banheiro para tentar se livrar das substancias ilícitas que tinham o tempo todo à disposição. Só que a maconha entupiu os canos das pias e dos vasos sanitários, e só lhes restou uma solução: teriam que cheirar toda a cocaína que tinham em mãos. “Você está louco, se a gente cheirar essa porra toda a gente vai morrer”. “Você já esteve numa cadeia antes?”, perguntou Ozzy. “Não”, retrucou o outro. “Pois eu já e te digo: não vou voltar para lá”. O pânico aumentou quando eles ouviram um oficial de polícia batendo insistentemente à porta e sendo atendido pela empregada, o que os fez meter desesperadamente o nariz na montanha de pó para tentar se livrar do flagrante. Ouvindo a conversa que se travava na sala, no entanto, souberam que tudo se tratou de um mal entendido: alguém (adivinha quem?) tinha apertado acidentalmente o botão de pânico que acionava a polícia, que fica ao lado do termostato do condicionador de ar, e por isso eles estavam ali. Constatado que estava tudo ok, apenas reprogramaram o sistema e se retiraram colocando-se à disposição para qualquer emergência.

Antológico.

PERDIDOS NA NOITE: A emocionante história de uma amizade improvável entre dois “excluídos” da sociedade: Joe Buck, um cowboy bronco que havia partido do Texas rumo a Nova York em busca de um sentido para sua vida vazia, e “Ratzo” Rizzo, um ladrão vagabundo e coxo que vivia de pequenos furtos e golpes na selva de concreto, sonhando com uma “aposentadoria” tranqüila na ensolarada Flórida. Gerou um filme de enorme sucesso em 1969, estrelado por Dustin Hoffman e John Voight e dirigido por John Schlesinger. Foi o único filme classificado como "X" nos Estados Unidos à vencer o Oscar de melhor filme e foi apontado pela crítica da época como “uma das mais emocionantes histórias de amor e amizade á produzidas pelo cinema norte-americano). O livro é literatura de primeira, o que pra mim não deixa de ser uma surpresa, pois nunca tinha ouvido falar de seu autor, James Leo Herlihy. Estou, inclusive, interessado em conhecer melhor sua obra – espero que consiga.

MALDITO! A VIDA E O CINEMA DE JOSE MOJICA MARINS, O ZÉ DO CAIXAO: Está destinada a se tornar clássica esta emocionante e divertida biografia de nosso maior astro do cinema “underground” cometida em 1998 pelo jornalista André Barcinsky. Através de sua leitura nos damos conta do impressionante talento nato do cineasta auto-didata que precisou primeiro ser redescoberto lá fora para readquirir prestígio entre nossa “inteligentsia”, depois de um longo período esquecido no qual se dedicou a produções de gosto pra lá de duvidoso, como aquela na qual introduziu a zoofilia no universo da então nascente industria pornográfica nacional. Ocaso que, diga-se de passagem, foi provocado em grande parte pela própria personalidade do retratado, sempre envolvido em imbróglios amorosos e perdendo todo o (muito) dinheiro que ganhava com extravagâncias sem sentido. Você, assim como eu, vai compreender melhor a importância desse verdadeiro gênio da raça depois da leitura deste livro – um cara capaz de dar a seu principal personagem um escopo filosófico bastante parecido com o da teoria do “super-homem”, do filósofo alemão Friedrich Nietsche, sem nunca ter posto os olhos sobre a obra do referido autor.

ROLLING STONE: É muito boa a versão brasileira da célebre publicação norte-americana – muito embora eu ache uma pena que ela tenha vindo, em parte, para ocupar a lacuna deixada pelo fim da revista BIZZ, um título de sucesso genuinamente nacional. Não que a Rolling Stone seja uma revista especificamente sobre música, como o era a Bizz, mas é seu foco principal, como não poderia deixar de ser, ostentando tal nome. Traz sempre boas traduções da publicação “gringa” (numa das últimas tivemos, por exemplo, uma rara entrevista inédita com Chuck Berry, o mito em pessoa) e também excelentes matérias produzidas aqui mesmo, pela equipe local, como as excelente reportagens sobre a Amazônia, uma constante nestas 40 edições já publicadas, e uma cobertura política ok. Que tenha vida longa.

PREVIEW: Uma das coisas mais interessantes de se vasculhar o Orkut é a possibilidade de poder interagir e ter um contato mais direto com alguns de nossos “ídolos” do jornalismo musical, muito embora isso signifique, também, a desagradável surpresa de saber que alguns deles são pessoas intragáveis, egocêntricas e anti-éticas. Uma dessas decepções que tive foi com Roberto Sadovsky, um mala – nunca o achei lá grande coisa, mas era um cara competente, e a SET, sob o seu comando, se não era brilhante, era bastante eficiente e informativa. Lia e colecionava, comprava todo mês, por isso fiquei, ao mesmo tempo, triste com o fim da publicação, seguramente a melhor do gênero no Brasil, mas ao mesmo tempo feliz por ver o “prego” do Sadovsky queimar a língua depois de infinitos posts mal-educados em que ele trucidava sem piedade seus colegas de jornalismo, dando a entender que, em sua concepção, só ele sabia como produzir uma revista de qualidade com sucesso comercial. Pois bem, a sucessora da SET, ao que parece, é a Preview, da Editora Sampa – não por acaso pilotada por boa parte da equipe oriunda da falecida publicação comandada pelo “marques de Sade”. Não é a última coca-cola gelada no deserto escaldante, mas é, assim como a Set, competente, enxuta e informativa. Um alento para os que, como eu, preferem ainda ler no papel ao invés do computador. A se registrar a decepção que foi a outra publicação que parecia disputar o mesmo espaço no mercado, a MOVIE, editada por André Forastieri: péssima! Bonitinha, mas ordinária.

VERTIGO: Revista mensal da panini que dá sequencia à saga que tem sido a publicação do selo Vertigo, da DC comics, no Brasil. Não tem um mix tão bom quanto o da extinta “pixel magazine”, da editora de mesmo nome, mas é ok. A melhor série apresentada é “Escalpo”, que se passa numa decadente reserva indígena norte-americana comandada por uma máfia, nos tempos atuais, com muito sexo, violência e um interessante subtexto político-social. Já “Lugar nenhum”, de Neil Gaiman, é confusa e se perde em clichês, mesmo problema sofrido por “Vikings”. Está aos poucos se renovando com a entrada de novas séries, como “Vampiro Americano”, e tende a melhorar.

FÁBULAS: Bill Willingham partiu de uma premissa brilhante: o que aconteceria se o mundo dos contos de fábulas existisse realmente e tivesse sido dominado pelas forças do mal, obrigando personagens conhecidíssimos de todos como a Branca de Neve, o lobo Mau e a Bela e a fera, dentre inúmeros outros, a se refugiar em nosso mundo, mais precisamente num bairro de (adivinha?) Nova York. Antológicos arcos, como o da guerra dos soldados de madeira (produzidos por Gepeto, o criador de Pinóquio, também exilado na metrópole dos mortais) e o que faz referência à clássica “Animal Farm”, de George Orwell, fazem dessa uma das séries mais aclamadas da vétigo em todos os tempos. Está sendo publicada pela panini em álbuns fechados, e é imperdível.

EX MACHINA: Outra premissa genial: o prefeito de Nova York é um super-herói temporariamente “aposentado” que foi alçado ao cargo depois de ter conseguido evitar o choque do segundo avião no ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center. Com argumentos inteligentíssmos, é igualmente imperdível- iclusive por conta dos belos desenhos de Tony Harris. O escritor é Brian K. Vaughan, o mesmo de outra excelente série, “Y – O último homem”, que também está sendo publicada pela panini e conta as desventuras do último homem (e do último macaco macho) que restou no mundo depois de um misterioso evento que dizimou todos os seres humanos do sexo masculino.

OCEANO: Ficção cientifica um tanto quanto clicherosa escrita por Warren Ellis e desenhada por Chris Sprouse (Tom Strong). Não é ruim, mas também não é tão boa ao ponto de merecer receber o acabamento de luxo que teve por aqui, com direito a papel de primeiríssima qualidade e capa dura. Esse tipo de decisão equivocada, que eleva muito o preço do exemplar, pode levar a prejuízos que, no futuro, inviabilizem a publicação no Brasil de obras bem mais importantes, como o bendito final da saga de Preacher, que continua inédito por aqui. Um outro bom exemplo é a impressionante Edição Definitiva de “Terra X”, outra história apenas mediana que não vale o absurdo preço de R$ 110,00 pela qual está sendo vendida (muito embora aqui você pode encontrá-la por “módicos” 58 mirréis). Na história de “oceano” o gélido local, localizado na lua “Europa” de Júpiter, guarda um segredo inimaginável tomado pela escuridão e frio absolutos: sarcófagos e relíquias de eras antigas que revelam a existência de uma população muito mais antiga e avançada que a humana. Obviamente, junto a tantas descobertas há um segredo ainda maior e muito mais preocupante, mas que se revela, no final das contas, banal e decepcionante.

por Adelvan

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Há 5 Anos, "direto do túnel do tempo"


Em 2005 eu planejava minha terceira ida à Cidade maravilhosa (por algum inexplicável capricho do destino eu só consigo ir ao Rio de 7 em 7 anos: a primeira foi em 1991, para o Rock In Rio 2, e a segunda em 1998, para a primeira apresentação do U2 no Brasil) quando soube que haveria um show do Nine Inch Nails, uma de minhas bandas favoritas, no Festival Claro que é rock. De cara já decidi que iria. Mal sabia eu que a banda de Reznor era apenas a cereja do bolo daquele que foi, na minha modesta opinião, o melhor festival de música que esse país já viu, com uma escalação digna de eventos de primeiro mundo do tipo Coachella ou Lollapalooza. Quando as demais atrações foram sendo anunciadas, eu mal conseguia acreditar: Flaming Lips, Sonic Youth, Iggy & The Stooges (gente, IGGY AND THE STOOGES !!!) e suicidal Tendencies – que foi substituido de ultima hora, pasmem, pelo Fantômas, de Mike Patton, Dave Lombardo e Buzz Osbourne, do Melvins, ninguém menos do que o cara que ensinou Kurt Cobain a tocar guitarra! Desnecessário dizer que a expectativa foi a mil.
No grande dia eu amanheci longe, muito longe. Estava em Campo Grande, um dos bairros mais afastados do Rio (não por acaso parece mais uma cidade à parte), na casa do meu amigo de longa data Chorão 3, ex-gangrena gasosa. Precisava ir até Ipanema encontrar outro brother dos tempos dos fanzines, Danubio Aguiar, do “Mensageiro”, que nos serviria como guia, para de lá partir para a igualmente distante “Cidade do rock”, em Jacarepaguá, o mitológico descampado onde aconteceram os Rock In Rio 1 e 3 e onde acontecerá a futura edição de 2011. Foi uma volta completa pela “cidade maravilhosa”.
Chegamos ainda com o sol a pino. Consegui entrar com uma meia-entrada falsificada (50 contos) achando que estava arrasando na “esperteza”, quando me deparo com cambistas vendendo 3 ingressos por inacreditáveis 10 reais !!! Isso aconteceu, pelo que soube, porque a Claro havia dado de presente um ingresso a quem tivesse comprado um aparelho nos dias que antecederam o evento, o que deve ter provocado um derrame de bilhetes descartados por quem não tinha interesse em ir. Normal, ganha-se umas, perde-se outras, e assim caminha a humanidade (aos trancos e barrancos).

Lá dentro, fui encontrando amigos cariocas que não via há tempos, como os Jasons Vital e Flock, e outros que via regularmente mas que sempre tinha prazer em reencontrar, como o gordinho carrancudo porém sempre gente boa Leonardo Panço, também do Jason. Conheci também Michael Meneses, carioca/sergipano com quem mantinha contato via net. O tempo ia passando e alguma coisa estava, claramente (sic), errada: um dos palcos ainda estava sendo montado e os shows simplesmente não começavam! Só depois fiquei sabendo que houve um acidente com o equipamento no caminho de São Paulo para o Rio, o que causou um desastroso atraso de mais de 3 horas ...

Desastroso porque causou um megacorte no set list de duas das principais bandas escaladas, Sonic Youth e Flaming Lips – especialmente lamentável para mim, já que esta seria, provavelmente, minha única chance na vida de ver ao vivo os reis da psicodelia “indie” e da distorção. Mas ok, nada de desanimar, já que o estupro era inevitável, era relaxar e gozar.
Cachorro Grande tocou ainda pelo dia – bom show, mas nada comparável ao que viria a seguir, portanto dispensável. Não exatamente o que veio na sequencia deles, uma tal de Good Charlotte que havia sido chamada apenas para satisfazer o público adolescente e na qual eu não prestei a mínima atenção. A partir daí foi uma cansativa maratona de apresentações memoráveis (uma nem tanto, como logo veremos) que me deixou exausto porém sorrindo de satisfação.
Tudo começou com o maravilhoso mundo da Disneyworld, quero dizer, dos Flaming Lips. Eu só os conhecia, e meio mal, de disco, e não estava preparado para o que estava por vir: foi um dos eventos mais “alto astral” que meus olhos e ouvidos tiveram o deleite de presenciar. Para começar, eles recrutaram alguns fãs para se fantasiarem como bichinhos de pelúcia e ficarem dançando nas laterais do palco, enquanto a banda executava suas canções de forma um tanto quanto desleixada porém absolutamente apaixonada, como já é característica deles. E tome clássicos da psicodelia moderna, como “race for the prize”, “Do you realize” e “She don´t use jelly”, além de excelentes covers de “War Pigs”, do Black Sabbath, apropriadamente dedicada à Besta-fera do apocalipse então em plena atividade, o presidente norte-americano George Bush, e “Bohemian Rapsody”, do Queen, com direito a um gigantesco karaokê com todos acompanhando a letra (muito louca, por sinal, não conhecia, é uma espécie de delírio aparentemente provocado por sentimento de culpa “pós-homicídio”) pelo telão – que mostrava, também, um bizarro close da garganta do vocalista, imagem captada por uma microcâmera instalada ao lado do microfone. Memorável. A lamentar apenas a duração, reduzida devido aos atrasos, o que nos privou do já célebre passeio na bolha de Wayne Coyne.
Já o show do Sonic Youth foi uma das maiores decepções de minha vida. A banda estava visivelmente mal-humorada (quero crer que devido ao atraso) e tocou apenas músicas que eu não conhecia, além daquelas intermináveis e chatíssimas improvisações em cima de microfonias inaudíveis. Foda que eu já estava cansado e resolvi sentar, mas um peso na consciência começou a martelar na minha cabeça -porra, era provavelmente minha única oportunidade de ver o Sonic Youth ao vivo e eu lá, sentado, morgado. Quando resolvi finalmente levantar para continuar VENDO, e não apenas OUVINDO, acabou! Desesperadoramente frustrante. Minha namorada na época, que estava comigo, resumiu bem a situação: “esses aí só fizeram “desdobrar””.
Mas o que veio a seguir compensou tudo. Depois de um longo tempo de espera, com apenas um roadie, bem “coroa”, por sinal, fazendo intermináveis inspeções no palco sob os berros da platéia impaciente, surge a catarse em forma de banda, Iggy & The Stooges, com formação “quase” original, ainda com Ron Asheton, que viria a falecer alguns anos depois, na guitarra. Desnecessário dizer que foi catártico, emocionante, visceral e inesquecível – e olha que eu vi tudo “de cara”, sem uma gota de álcool ou qualquer outra substancia entorpecente no sangue, para a incredulidade dos meus amigos de Aracaju para quem relatei o fato posteriormente. Eu poderia inclusive morrer naquele exato momento e morreria feliz, mas haviam ainda mais duas apresentações potencialmente bombásticas pela frente ...
Fantômas, o show mais improvável de minha vida. Não foi dessa vez que eu tive a honra de ver um dos meus ídolos do Slayer em ação ao vivo, já que Dave Lombardo não pôde vir e foi substituído, à altura, por Terry Bozzio, conhecido por seu trabalho com Frank Zappa. Foi surreal: uma gigantesca cacofonia de ruídos aparentemente desconexos comandada com maestria pelo maluco-mor Mike Patton. Musicalmente é meio chato, mas valeu demais pela ousadia da produção em chamar algo tão anti-comercial para um evento deste porte – dava pra ver claramente (sick again) o público “feijão com arroz“ se dispersando em sinal de reprovação, o que, convenhamos, é sempre lindo.
Fechando a noite, Nine Inch Nails. Lindo, poderoso, pulsante, chapante. Jogos de luzes ofuscantes, batidas poderosas chacoalhando nosso coração, belas melodias (“Hurt” é muito emocionante ao vivo) invadindo nossos ouvidos. Um desfile de músicas memoráveis de todas as fases da banda, de “Head like a Hole”, do “pretty hate machine”, a faixas do então novo disco deles, “with teeth”. Trent Reznor é poser pra caralho, sempre jogando os microfones para o lado com um ar blasé, mas ele pode, porque ele é foda. Tava cansado mas resisti bravamente até o final.
No final, o caos. Aquela porra de cidade do rock fica no fim do mundo e no meio do nada, é impressionante. As poucas vans que apareciam eram disputadas a Tapas, e eu já começava a ficar preocupado pois íamos ficando para trás e o descampado estava cada vez mais vazio. Depois de uma longa espera conseguimos, finalmente, embarcar numa van pra lá de superlotada, no que foi, sem sombra de dúvidas, a viagem mais desconfortável de minha vida, em pé e me contorcendo, até Ipanema – a mesma Ipanema na qual eu vi de rolê tranquilamente, na noite seguinte, dois de meus maiores ídolos, Mike Patton e Buzz Osbourne.
Foi lindo.
A.
-------------------
Claro Que é Rock 2005
Fantomas * Flaming Lips * Iggy & The Stooges * Sonic Youth * NIN
por Marcelo Costa
30/11/2005
Várias verdades puderam ser conferidas após a edição do badalado festival Claro Que é Rock, no último fim de semana, em São Paulo e no Rio de Janeiro: 1) O público brasileiro é definitivamente difícil de agradar 2) Os cariocas não prestigiam o rock 3) Mike Patton é um mala 4) Festivais de grande porte são ótimos para ferrar cambistas 5) Os técnicos de som brasileiros não conseguem equalizar o som de dois palcos da mesma forma: o som do Palco A estava beeem melhor que o do palco B 6) Iggy Pop e Trent Reznor são fodas 7) Uma pergunta: Onde se compra um daqueles arremessadores de confetes que o Wayne Coyne estava usando?

Na verdade, tudo que deu certo em São Paulo não deu certo no Rio de Janeiro. Enquanto a capital paulista viu 25 mil pessoas circularem pela Chácara do Jóquei, em horários distintos (é importante frisar), os cariocas colocaram apenas 12 mil pessoas na imensa Cidade do Rock, sofreram com longos atrasos (que não aconteceram em SP) que, por fim, causaram o cancelamento do show da Nação Zumbi e cortes nos 'set lists' de Flaming Lips e Sonic Youth. E enquanto era possível comprar de cambistas por R$ 30 um ingresso para a área VIP em São Paulo, no Rio de Janeiro teve ofertão: três ingressos por R$ 10.
No entanto, fora os contratempos do Rio de Janeiro, a edição paulistana do evento foi praticamente perfeita. Começou às 15h com o Ronei Jorge dando partida na finalíssima do concurso do festival (que foi vencido pelos gaúchos do Cartolas) para pouco mais de cinco mil pessoas. Quando o festival começou mesmo, às 19h, com o Good Charlotte, cerca de mais de dez mil pessoas (umas cinco mil com menos de 18 anos) já caminhavam pelo local. Ao final, 25 mil pessoas pisaram na lama de um quase autêntico Woodstook brasileiro (ainda bem que não choveu!!!). Tirando as imensas filas para se comprar comida e os estacionamentos distantes, o Claro Que é Rock se mostrou um bom grande festival.

Algumas pessoas reclamaram do som (ótimo), outras do local do festival (quem sabe preferiam a "limpeza" de um Credicard Hall). Porém, vamos ao que interessa: música. "Nós somos o Suicidal Tendencies", disse Mike Patton ao tomar o microfone com sua banda, Fantomas. A rigor, como diz um amigo, o Fantomas deve ser muuuito bom, ou então muuuito ruim. Eu fico com a segunda hipótese. Um crossover inaudível dos piores clichês de punk e metal aliados a barulhinhos eletrônicos. Uma brincadeira sem graça. Funciona como desconstrução e até tem seu valor estético em um festival de massa, um local em que a maioria do público refém de MTV vai ver bandas certinhas como o Good Charlotte, e dá de cara com uma apresentação totalmente surreal, mas é o tipo de coisa que enche o saco após dez minutos. Mesmo.
Já o Flaming Lips prometeu mundos e fundos ao público. "Vocês vão ver o show mais foda de suas vidas", disse Wayne Coyne. Não foi, mas com certeza foi o mais divertido e um dos melhores de todo o festival com os Lips levando seu mundo de Disneylândia para o palco. Uma dezena de bichinhos estilo Parmalat, confetes, bolha de plástico, guitarrista vestido de Papai Noel, baixista vestido de Caveira, uma loucura. Visualmente era impossível não ser conquistado pelo mundo fantasioso de Coyne, que ainda brindou o público com seus ótimos vídeos feitos de próprio punho no telão (e que acabam de ganhar edição nacional via DVD: Void 1992-2005 Video Overview In Decelebration). Se um show de rock é diversão e entretenimento, a apresentação do Flaming Lips foi perfeita, apesar do quesito música ficar em segundo plano, e o vocalista ter um fiozinho de voz que sumia a todo o momento. Mesmo assim, clássicos como She Don't Use Jelly, Race For Prize, Fight Test, Do You Realize? e a sensacional Yoshimi Battles The Pink Robbots fizeram a festa do público, que ainda pode participar de um imenso karaokê na boa cover de Bohemian Rhapsody, do Queen, e ainda viu Coyne sacanear George W. Bush numa cover da poderosa War Pigs, do Black Sabbath, que encerrou a festa provando que mesmo no mundo da fantasia é possível ser político e oportuno. Simplesmente sensacional.
Iggy & The Stooges subiram no palco A do evento dispostos a sacanear o público. O som, altíssimo, impediu que o coro de 20 mil pessoas cantando "Now I wanna be your dog" sobrepusesse a excelência de barulho que saia das caixas de som. No repertório, quase todas as pérolas dos dois primeiros álbuns clássicos dos Stooges (The Stooges, de 1969, e Fun House, de 1970) se alternavam para a alegria e loucura dos fãs. No palco, os irmãos Ron (guitarra) e Scott Asheton (bateria) contavam com a presença histórica do baixista Mike Watt, lenda do rock norte-americano. E à frente de tudo isso o insano, demônio, maluco e carismático Iggy Pop, que aos 58 anos se entregou de corpo e alma para o público brasileiro. Vestindo uma calça nacional modelo feminino de menos de 10 dólares, Iggy passou todo o show se contorcendo, simulando sexo com caixas de som, e incentivando o público a invadir o palco. Cantou No Fun entre mais de quinze pessoas, que ora tomavam o microfone de sua mão, ora o abraçavam, ora levavam a mão ao rosto sem saber se acreditavam que estavam ao lado de uma lenda. Ao final, não quis deixar que os invasores saíssem do palco, reclamou da iluminação ("Não quero saber se vocês são da televisão ou do governo, acendam as luzes", ordenou) e mostrou que efeitos e iluminação são dispensáveis se você tem carisma, um bom repertório e é um cara fodaço. Clássico.
Com a lembrança do show arrasador que a banda fez no Free Jazz alguns anos atrás, o Sonic Youth era a certeza de uma apresentação apoteótica. Grande engano. A rigor, existem dois Sonic Youth desde sempre. Um legal pra caralho (de hits como 100%, Teenage Riot, SugarKane e do show no Brasil em 2001) e outro chato demais (de inaudíveis álbuns paralelos como Anagrama, Goodbye 20th Century e Slaapkamers Met Slagroom). O que se apresentou no Claro Que é Rock trazia o clima charmoso do Sonic Youth cool soterrado pela execução e a paixão pela microfonia do Sonic Youth chato. Em uma palavra, o show foi tedioso. Boa parte da culpa pelo tédio pode ser jogada sobre o repertório, com cinco longas canções do fraquíssimo Sonic Nurse, álbum mais recente de estúdio da banda, que fecha a trilogia Nova York iniciada com os bons NYC Ghosts & Flowers (2000) e Murray Street (2002). Porém, mesmo canções incendiarias como Schizofrenia e Bull on the Heather soaram pálidas e desconfortáveis. Ao fim, a banda definiu a apresentação com uma exaustiva e terrivelmente chata onda de microfonia que durou longos dois minutos e meio. Acredite: o Sonic Youth é muito foda no palco, mas não esse Sonic Youth.
Após o banho de água fria que foi a apresentação do casal Thurston Moore/Kim Gordon, o Nine Inch Nails se revelou uma expurgação de demônios. Em seu livro Barulho, o jornalista André Barciski comentava sobre um show do Nirvana que havia visto em Seattle, 1993: "Finalmente entendi o que um amigo me falou sobre um show do Ministry. 'Foi a coisa mais violenta que eu já vi'. Eu não entendia ou não acreditava. Agora sim deu para pegar o espírito da coisa. A violência em questão não é aquela coisa escrota a que estamos acostumados, com imbecis armados de machadinhas querendo matar alguém. Ninguém sai machucado de um show do Nirvana, mas purificado. O Nirvana solta os bichos que existem em você". E é mais ou menos isso que se pode dizer de uma apresentação do NIN. Uma avalanche de bateria eletrônica misturada a porradas humanas, baixo seqüenciado, guitarras poderosas, um jogo de luzes de palco absurdo e por cima de tudo isso o vocal insano do maluco de carteirinha Trent Reznor. Enquanto uns 700 gatos pingados urravam a cada nova música, uns outros 12 mil achavam que estavam em uma rave. Na boa, as letras surreais do gênio Trent Reznor esperam os últimos.
No repertório do Nine Inch Nails, pouca concessão ao material novo, do bom (mas levezinho) With Teeth (2005), representado pela faixa título e pelas boas The Line Begins to Blur, The Hand That Feeds e Only. De resto, Trent resgatou porradas de seus primeiros álbuns como Sin, Head Like a Hole e Terrible Lie (Pretty Hate Machine, 1989), March of the Pigs, Closer e a fodaça Hurt apenas em voz e piano (Downward Spiral, 1994), e praticamente ignorou o constantemente detonado álbum duplo The Fragile (1999), mixando The Frail com The Wretched. No geral, a apresentação foi monstruosa, um tiquinho "poseur" (com instrumentos e pedestais constantemente jogados de um lado para o outro do palco) e teve, como único ponto negativo, o avançado da hora. Por mais que a porrada estivesse saindo clara e alta pelas caixas de som, nem todo o público tinha pique para pular ensandecidamente àquela altura da madrugada. No entanto, quem questionava o NIN como headliner do festival teve motivos de sobra para entender a escolha após um show memorável. E o que foi Hurt? Só faltou Johnny Cash baixar no palco...
No saldo final, o Claro Que é Rock conseguiu apagar o quase fiasco das apresentações do Placebo no primeiro semestre, primou (em São Paulo) por uma boa organização no geral para um festival deste porte, e esbarrou em qualidade de shows com o Curitiba Rock Festival, com Stooges, NIN e Flaming Lips fazendo shows à altura de Weezer e Mercury Rev. Só precisa, para 2006, destacar melhor as bandas nacionais.